sábado, março 04, 2006

CAMPONESES X NEOLIBERALISMO


Daniel Corrêa da coordenação nacional do MST na abertura da
Conferência sobre Alternative Visions of Development: The Rural Social Movements in LA,
em Gainesville (23-25 de fevereiro de 2006)

Camponeses no mundo globalizado

Para quem trabalha com movimentos sociais na Amazônia brasileira soa um pouco estranha a auto-definição dos sem terra e produtores familiares do Brasil e de outros países da América Latina como camponeses. Mas é preciso entender primeiro para então comparar e questionar, se for o caso.

Primeiro, definem-se como camponeses os trabalhadores rurais sem terra ou assentados em projetos oficiais de reforma agrária. Estamos falando de uma reforma agrária baseada na propriedade familiar da terra, em atividades agrícolas voltadas prioritariamente para a subsistência, produzidas com a mão de obra familiar e patrocinada pelo Estado. Embora este seja o modelo clássico da economia camponesa, estamos falando de um campesinato gerado pelo Estado.

Segundo, de acordo com os sem terra, o grande inimigo e responsável pela falência desta agricultura familiar é o neoliberalismo que transformou o campo em área de exploração de grandes corporações multinacionais com as quais não é possível competir.

Terceiro, de acordo com os movimentos, a reforma agrária visa a organização em torno da resistência às multinacionais do campo, em defesa da segurança alimentar, do fortalecimento da identidade camponesa - uma categoria muito antiga na história da humanidade e que permanece nas bordas do sistema - e da tentativa de revalorização do espaço que foi ocupado por centenas de anos por pequenos produtores, o da produção de alimentos.

O que soa estranho (e interessante) é o fato do enfrentamento dos mesmos problemas dar origem a soluções muito diferentes. O extrativismo da borracha na Amazônia também foi substituído por grandes plantações ligadas ou subordinadas às multinacionais de pneus; um campesinato amazônico típico formado de ex-trabalhadores de empresas seringalistas também sobreviveu nas bordas do sistema quando os seringais faliram; mas quando surgiu a oportunidade destes trabalhadores definirem sua própria identidade e seu próprio destino, eles optaram por um modelo altamente inovador e revolucionário.

A reforma agrária dos seringueiros

A reforma agrária das reservas extrativistas é o oposto do modelo dos sem terra: não é propriedade privada, é terra do Estado em concessão de uso, tem critérios ambientais de uso, estabelece uma co-responsabilidade de gestão entre as famílias e o poder público, e as atividades econômicas, para serem bem sucedidas, precisam se inserir nos nichos de mercado que prevalecem apesar do neoliberalismo ou nos novos sistemas de produção baseados na sustentabilidade. A busca de tecnologia e de novos produtos é essencial ao modelo, o que permite alianças com ONGs, pesquisadores, empresários e outros segmentos do chamado fair trade, ou comércio justo.

Os índios na Amazônia também estão em busca de uma gestão mais adequada dos recursos naturais em suas terras. Se considerarmos os agentes agroflorestais do Acre, por exemplo, inclusive a produção de alimentos passa por uma sensível revolução tecnológica.

Críticas às ONGs

A maioria das organizações camponesas da América Latina está associada à Via Campesina, forte rede de contestação ao neoliberalismo. E a maior parte delas, também, critica fortemente a atuação das ONGs pelo fato de quererem controlar, falar em nome dos trabalhadores e competir por recursos nas mesmas fontes.
Minha visão das ONGs é inteiramente diversa. Não fossem as ONGs se aliarem a movimentos sociais e forças democráticas e estaríamos ainda muito longe dos direitos e liberdades que hoje são comuns na nossa sociedade.

Educação

Comparando com os movimentos sociais amazônicos é admirável a capacidade organizativa do MST. Eles têm um corpo ideológico definido, formam seus líderes nestes princípios, acreditam em um outro modelo de sociedade, valorizam muito a educação como meio de conscientização sobre direitos sociais e são sinceros em suas motivações de mudanças. Por outro lado, estão em conflito com a questão tecnológica que associam ao domínio do neoliberalismo.


A autora em sua apresentação sobre Movimentos Ambientais e Políticas Públicas no Brasil na mesa coordenada por Marianne Schmink

Luta de classes revisitada ou sustentabilidade do desenvolvimento?

O que me causou estranheza nos dois dias de debate na Flórida, foi a diferença gritante entre dois tipos de movimentos sociais:

Na Amazônia brasileira trabalhadores, ONGs, pesquisadores, empresários, estão articulados em busca de novas formas de produção que equilibrem o uso dos recursos naturais, a justiça social e o desenvolvimento; uma das formas de concretizar esses objetivos é fazendo o Estado executar políticas públicas afinadas com estes objetivos e estabelcer alianças estratégicas com segmentos formadores de opinião. As conquistas destes grupos têm sido enormes embora ainda muito aquém do papel que eles desempenham na proteção de recursos naturais estratégicos ao país e ao planeta. Afinal, juntando índios e seringueiros cerca de um terço da região está nas mãos deles!

Por outro lado, os sem terra vêem o mundo dividido em duas classes, eles e os capitalistas neoliberais e sua luta. Embora parcela significativa da sociedade brasileira veja com simpatia a causa - e conquistar a opinião pública é um dos objetivos do movimento - a visão de mundo que eles defendem não abre espaços para segmentos médios da sociedade.

Alianças na diversidade

Eu não acredito no isolamento ideológico, muito menos acho que a sociedade, complexa como é, possa ser reduzida a dois segmentos. O erro de muitos movimentos e partidos políticos (de esquerda e de direita) é achar que detém o monopólio da solução e se auto-qualificarem como capazes de formular a melhor solução, transpondo o ponto de vista específico como se fosse válido para todos os demais.

Acredito na diversidade. Gostaria muito de ver os sem terra com seus direitos reconhecidos e seu modo de produzir respeitado. Mas não aceito a destruição de laboratórios de pesquisa aqui ou em qualquer outro lugar do planeta. Me parece próximo do obscurantismo. Por outro lado, seria interessante se os movimentos sociais amazônicos pudessem compreender o valor da educação e da organização e se inspirassem nos sem terra para administrar com competência o enorme patrimônio natural que está em suas mãos.

Se ambos, sem terra e seringueiros, percebessem melhor quem são seus reais inimigos, talvez pudessem fazer alianças muito criativas.


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