quarta-feira, agosto 17, 2011

UMA DÍVIDA FICTÍCIA NO NOME DOS SERINGUEIROS

Quem diz que a justiça não funciona no Brasil, se engana. Ela é eficiente, rigorosa e perseverante quando se trata de punir pessoas ou instituições que não têm influência econômica ou política. Nestes casos, a justiça vai às últimas consequências para provar que vigia o uso correto do dinheiro público e não descansa enquanto não vence todos os argumentos interpostos no caminho.

Essa foi só uma das conclusões a que cheguei depois de ler o processo 0000721-04.1994.8.03.0001 de 21/11/1994 da Fazenda Pública do Estado do Amapá contra o Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS (hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas), um documento de 322 páginas denominado de "Ação de Posse dos Semoventes".

Por determinação do Juiz da 6ª Vara Civil, em outubro do ano passado, um bloqueio retirou R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) da conta do CNS do Amapá que foram transferidos para a Fazenda Pública do Estado do Amapá. No dia 2 de agosto passado novo bloqueio foi determinado no valor de R$390.211,66 (trezentos e noventa mil, duzentos e onze reais e sessenta e seis centavos).

O recurso bloqueado pertence a diferentes projetos do CNS em toda a Amazônia que beneficia centenas de famílias e que tem prazos e atividades definidos em convênios e contratos com diferentes órgãos públicos e organizações não-governamentais, inclusive com o próprio Governo do Estado do Amapá, que precisam ser executados. O bloqueio tem consequências financeiras, sociais e ambientais dramáticas.

Mas de onde vem essa dívida e por que ela é fictícia?

Resumo da história

A peça principal do processo é bizarra: trata-se de um "Termo de Cessão sem ônus para o cessionário de 100 (cem) muares, para que o mesmo atenda exclusivamente seus associados no escoamento de produção". O documento estabelece as regras de uso, determinando a proibição de "ceder, emprestar, vender, transferir" devendo a utilização dos muares ficar vinculada às atividades específicas do CNS – Regional do Amapá, na localidade de Muriacá do Cajari. O não cumprimento das obrigações levaria o cessionário a responder por perdas e danos.

O Termo de Cessão foi assinado em 3 de novembro de 1992 pelo então governador do Amapá, Annibal Barcellos, e por um representante de uma associação vinculada ao CNS, com a interveniência da Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento pelo período de 12 meses, ao final do qual os animais deveriam ser devolvidos. Os burros seriam destinados ao trabalho de transporte de castanha-do-Brasil, realizado por castanheiros moradores na Reserva Extrativista do Rio Cajari, no Amapá, unidade de conservação federal criada em 1990 e vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.

O que está sendo cobrado pela Fazenda Pública do Estado do Amapá ao CNS é uma indenização pela não devolução dos burros, cujo valor hoje está em mais de R$400.000,00. É para assegurar esse pagamento que R$80.000,00 foram retirados das contas bancárias do CNS no final do ano passado e outros R$390.211,66 correm o mesmo risco agora.

Cronologia do absurdo

Fevereiro 1994. Vistoria da Secretaria da Agricultura identificou 5 burros mortos e os outros 95 em boas condições, trabalhando em 10 comunidades na Resex do Rio Cajari.

Maio 1994. Notificação do Estado do Amapá solicitou a devolução dos burros na agência do órgão estadual de assistência técnica em Água Branca do Cajari.

Novembro/dezembro 1994. O Estado do AP ajuizou "Ação de Posse dos Semoventes", processo N. 1.617/94 no qual o CNS figura como réu. A primeira audiência foi convocada para um prazo de três dias; o prazo foi adiado a pedido do CNS, mas foi determinado procedimento sumaríssimo, ou seja, o não comparecimento do Conselho, como parte acusada, já significaria culpa à revelia.

Fevereiro 1995. Na nova data da audiência, o CNS não compareceu e o advogado não tinha procuração para representá-lo. O CNS foi condenado a fazer entrega de 100 cabeças de muar no prazo de 10 dias.

Junho 1995. Face ao descumprimento da determinação, o Estado do AP transformou a obrigação de devolver os burros em pagamento de indenização, correspondente ao valor de 100 cabeças de gado muar, acrescido de juros, correção monetária e honorários advocatícios.

Julho 1995/outubro 1996. O processo ficou parado por um ano e três meses.

Novembro 1996. O EAP ajuizou Ação de Execução de Entrega de Coisa Certa, requerendo a busca e apreensão dos muares. O oficial de justiça relatou que não pode cumprir a ordem porque o CNS lhe informou o seguinte: "os animais referidos no mandado não mais existem, tendo em vista que eles foram doados a diversos colonos da região de Maracá do Cajari, em Laranjal do Jari-AP, e que outros morreram acometidos de doenças próprias da espécie."

Dezembro 1996/dezembro 1997. O processo ficou parado um ano.

Janeiro 1998. O EAP requereu a suspensão do processo pelo prazo de um ano. O processo ficou um ano e quatro meses parado.

Maio 1999. O senhor Oceano Atlântico da Silveira e Souza foi nomeado perito para definir o valor da indenização. Deveria responder a duas questões: - Qual o preço médio de mercado dos muares? - Em quanto importam as perdas e danos suportados pelo Requerente, levando-se em consideração o tempo decorrido entre a assinatura do Termo de Cessão (03.11.92), seu prazo de duração (12 meses) e o tempo que o Requerente, até a data da perícia, encontrava-se sem poder utilizar os bens objeto da mencionada Cessão? Foi designada também a médica veterinária Maria Eugênia de Oliveira Picanço como assistente técnica.

Observa-se que não há no processo nenhuma descrição da qualificação técnica do perito. Também fica difícil entender quais seriam "as perdas e danos suportados pelo Estado do AP" e os prejuízos pelo fato de "não poder utilizar os bens objeto da cessão" durante o tempo decorrido pelo processo. Qual seria a utilidade dos burros para o Estado do Amapá?

Outubro 2000. O perito, auto-identificado como pequeno pecuarista, confirmou em seu relatório a impossibilidade de realizar a perícia pela inexistência dos bens, ou seja, por falta de provas materiais. Declarou que o preço de mercado dos muares era de R$750,00, colocado em Macapá, uma vez que só seriam encontrados no Nordeste, avaliando o valor da indenização em R$75.000,00.

A médica veterinária assistente do perito discordou da avaliação e afirmou ter encontrado semoventes de excelente padrão zootécnico em Macapá, já treinados para serviços de tração, no valor de R$500,00 cada animal totalizando em R$50.000,00 o valor da indenização. O Estado do AP, no entanto, não levou em consideração essa segunda avaliação nem justificou.

Março 2001. O juiz mandou intimar as partes para Audiência de Instrução e Julgamento a fim de decidir sobre a indenização. O CNS compareceu sem advogado e não se manifestou sobre o laudo pericial e o processo foi concluído para sentença.

Abril 2001/novembro 2004. O processo ficou parado por três anos e sete meses.

Dezembro 2004. A perícia foi homologada e os autos foram encaminhados ao contador judicial para atualização do valor devido.

Abril 2005. O valor do principal foi definido em R$151.335,11, acrescido de honorários advocatícios e custas processuais.

Maio 2005. Foi emitido Mandado de Citação, Penhora e Avaliação. O oficial designado deixou de penhorar os bens por não encontrar o suficiente para o total da dívida. Os bens encontrados na sede do CNS em Macapá foram: 1 computador, 1 impressora, 1 fax, 1 ar condicionado, 1 arquivo de aço, 1 máquina de escrever elétrica, 1 bebedouro, 2 escrivaninhas, 2 mesas para computador, 1 mesa com cadeiras.

Maio 2005/julho 2006. O processo ficou parado por um ano e dois meses.

Agosto 2006. O Estado do AP solicitou suspensão da execução do processo por 60 dias para localizar bens passíveis de penhora.

Agosto 2006/janeiro 2007. O processo ficou parado por cinco meses.

Fevereiro 2007. O Estado do AP informou que não localizou bens passíveis de penhora e requereu suspensão do processo colocando-o em arquivo provisório; o juiz determinou a suspensão por um ano.

Março 2007/abril 2008. O processo ficou suspenso por um ano e dois meses.

Maio 2008. O juiz mandou arquivar os autos provisoriamente.

Maio 2008/fevereiro 2010. O processo ficou parado por um ano e nove meses.

Março 2010. O Estado do AP requereu pesquisa no sistema BACENJUD e nova diligência em busca de bens.

Agosto 2010. O Estado do AP manifestou interesse em prosseguir com o processo, apresentou planilha atualizada e solicitou ofício ao Banco Central do Brasil para saber onde o réu possui conta bancária que permita satisfação do crédito, bloqueio do valor correspondente e transferência destes valores ao FUNDO-PROG.

Por que os burros não foram devolvidos?

Essa é uma das perguntas mais importantes dessa história, mas não aparece nos autos.

Para cumprir o objeto do contrato - atender exclusivamente seus associados no escoamento de produção – o termo de cessão não poderia ter estabelecido a devolução dos animais, muito menos no prazo de um ano. Não existe relação lógica entre as duas exigências, pelas seguintes razões:

1 - O cessionário, o Conselho Nacional dos Seringueiros, criado em 1986, representava extrativistas em toda a Amazônia, com legitimidade e determinação, mas sem recursos nem estrutura econômica ou administrativa em 1990.

2 - Os moradores da Resex do Rio Cajari, associados do CNS, a quem se destinavam os 100 burros, eram castanheiros pobres que sempre trocaram castanha por alimentos com intermediários que nunca pagaram preço de mercado pelo produto, o clássico sistema de aviamento predominante na Amazônia. Castanheiros e seringueiros vivem dentro da floresta, em pequenas clareiras chamadas "colocações", onde estão a moradia, o roçado, a criação doméstica. Os seringais geralmente ficam perto da moradia, os castanhais, mais distantes. Como regra, cada extrativista vive distante do outro em função da baixa densidade natural das espécies que utilizam.

3 – Os burros foram cedidos para transportar a castanha, que estava na mata, que precisava ser retirada pelos castanheiros. Para cumprir com o objetivo do Termo de Cessão, os burros deveriam ficar nas colocações dos castanheiros, sob os cuidados dos mesmos e transportar a castanha dos castanhais para a vila onde se dava a comercialização.

4 – Assim, o mais lógico era que cada castanheiro levasse um ou dois burros para sua colocação, o alimentasse e usasse sua força para transportar a produção. E assim foi feito. Para cumprir sua missão os muares foram espalhados pela Resex de 481 mil hectares.

5 – Além de ser mais lógico e eficiente distribuir os animais, não seria viável manter 100 muares em um único espaço; primeiro, porque o CNS não dispunha desse espaço; segundo, porque não tinha estrutura para alimentar e cuidar dos animais; terceiro, porque não cumpriria o objetivo pelo qual recebeu os animais. Portanto, os burros não poderiam ficar todos juntos, em um único lugar, guardados para serem devolvidos no prazo de um ano.

6 - Os burros têm um ciclo de vida de 15 a 25 anos; aqueles que foram entregues ao CNS não eram recém-nascidos, portanto, deveriam ter, pelo menos, 5 anos. É bem possível, portanto, que tenham deixado de existir enquanto o processo tramitava e que todos estejam mortos e enterrados há algum tempo. Apesar disso, a justiça cobra por eles mais de R$166 mil.

Por todas estas razões o Termo de Cessão nunca teve base na realidade e jamais poderia ser cumprido. Como seria possível distribuir os animais em 481 mil hectares de floresta e, um ano depois, ir lá e pegar de volta para devolver ao governo?

Então, por que este Termo de Cessão foi feito?

Essa é a questão fundamental. Afinal de contas, nunca se soube que Annibal Barcellos tivesse qualquer simpatia ou apreço pelos castanheiros do Amapá para, em um impulso sem precedentes, lhes emprestar os meios para o transporte de castanha.

A verdade é que estes burros foram DOADOS aos castanheiros do Cajari como compensação pelo impacto causado pela abertura de uma estrada ligando Macapá a Laranjal do Jari, a BR 156, que passa no meio da Reserva Extrativista do Rio Cajari. Esta decisão foi tomada em uma audiência pública de avaliação do impacto da estrada, para tornar os seringueiros mais favoráveis à obra. Os burros faziam parte de inúmeras medidas de apoio à Resex, a serem implantadas pelo governo do Estado do Amapá, mas que nunca foram cumpridas.

Depois de uma ampla busca conseguimos localizar o DOCUMENTO DE DOAÇÃO, que não consta do processo contra o CNS, mas que faz parte da documentação da abertura da estrada e que agora está disponível para a Justiça do Amapá.

O fato sociológico é que a cessão dos burros nunca teve nenhuma aderência à realidade, como já foi mostrado. O fato jurídico é que uma DOAÇÃO destinada a compensar os castanheiros pela perda de uma parte da Resex e pelos riscos de uma estrada passando dentro de uma reserva, foi transformada em CESSÃO, documento assinado por um representante dos castanheiros, em 1992. E como ninguém havia achado o documento de doação até poucos dias atrás, a mentira virou verdade e o Estado ficou dando voltas em torno desse fato por quase 20 anos. E hoje os extrativistas de toda a Amazônia estão sendo prejudicados pela decisão de bloquear as contas bancárias do CNS para pagar uma dívida que é, de fato, fictícia.

Mais. Não é o CNS que deve ao Estado do Amapá. É o contrário: o Estado do Amapá deve aos castanheiros do Cajari todas as ações que prometeu, e nunca cumpriu, como indenização pelos impactos causados pela BR 156 que atravessou seu território. Nunca poderia cobrar por ter doado 100 burros para carregar castanha nem em 1994 nem hoje.

Justiça verdadeira seria o Estado do Amapá arquivar esse processo, devolver o dinheiro bloqueado, atualizar os compromissos assumidos quando da abertura da BR 156, compensar os castanheiros do Cajari por esse equívoco histórico e pedir desculpas ao CNS pelos transtornos.

domingo, maio 03, 2009

Extrativismo no Plano Amazônia Sustentável

Esta semana 60 representantes de Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável de toda a Amazônia, liderados pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, estarão reunidos para discutir uma nova política para o extrativismo no âmbito do PAS - Plano Amazônia Sustentável. É uma iniciativa da SAE - Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República que coordena o PAS, com apoio do CGEE - Centro de Estudos e Gestão Estratégica.

O seminário "O PLANO AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL E O FUTURO DO EXTRATIVISMO" será realizado nos dias 6 e 7 no salão Acrópole do Hotel Mercure Apartment Brasília Líder, em Brasília.
AGENDA

No dia 6, a abertura será realizada pelo Ministro Mangabeira Unger e espera-se também a presença do Ministro Minc. Em seguida a SAE vai apresentar a proposta de uma Nova Política para o Extrativismo. No período da tarde a proposta será discutida com os participantes. No dia 7 serão debatidos dois temas considerados relevantes pelos extrativistas:

Tema 1 - Regularização Fundiária das Reservas Extrativistas. O objetivo é realizar um balanço das dificuldades encontradas na regularização fundiária das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, especialmente das Reservas Extrativistas na Amazônia, e apresentar alternativas.

Foram convidados a participar deste debate as seguintes instituições: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; Advocacia Geral da União; Secretaria de Patrimônio da União; INCRA; Ministério Público Federal e Secretaria de Assuntos Estratégicos.

Tema 2 - Gestão e Desenvolvimento das Reservas Extrativistas. O objetivo é realizar um balanço das ações, dificuldades e oportunidades relacionadas à gestão e ao desenvolvimento econômico das Reservas Extrativistas na Amazônia.

Foram convidados a participar deste debate as seguintes instituições: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável/MMA; Serviço Florestal Brasileiro; MAPA/Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Conab/Companhia Nacional de Abastecimento; Ministério do Desenvolvimento Social; Representante do PAC Social/Casa Civil; Secretaria de Assuntos Estratégicos.

Ao encerrar o seminário será definida uma Agenda de Compromissos entre os participantes.

UM BALANÇO 20 ANOS DEPOIS DE CHICO MENDES

O seminário vai fazer um balanço das conquistas e dos impasses vinte anos depois do assassinato de Chico Mendes e propor novas políticas que superem os obstáculos existentes para que as populações possam desenvolver sua potencialidade econômica e melhorar a qualidade de vida sem precisar para isso destruir a floresta.

As conquistas, vinte anos depois do assassinato de Chico Mendes, são enormes. Em termos de áreas criadas para populações extrativistas, os dados são impressionantes: as áreas reservadas para populações extrativistas totalizam 87 unidades protegendo 4.6% da Amazônia Legal. São 68 Resex e 19 RDS, federais e estaduais, cobrindo uma área total de 24.011.555 hectares (12.994.045 Resex e 11.017.510 RDS), representando 2.49% e 2.11% da Amazônia Legal respectivamente.

O mapa a seguir, produzido pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), para o seminário, mostra todas as áreas criadas até o momento:
















Fonte: IPAM/CGEE

O mais interessante é que estas áreas, desde que começaram a ser criadas, em 1990, até 2007, apenas desmataram 4% deste total; 3% no caso das Resex e 1% no caso das RDS.









Fonte: IPAM/CGEE

Durante o mesmo período deixaram para trás o sistema tradicional de escravidão por dívidas, criaram formas próprias de organização social e econômica, adquiriram educação formal, melhoraram os níveis de saúde, ampliaram os espaços de participação e influência nas políticas públicas.

Os impasses e desafios não são menores: desse total de áreas criadas, apenas duas estão plenamente regularizadas e receberam concessão de uso, conforme determina a lei. A regularização das demais anda em passos tão lentos que esse será um dos temas do seminário, que procurará reunir todos os órgãos responsáveis na mesma mesa, feito inédito até hoje.

Outro impasse refere-se às regras de gestão. O modelo adotado pela Lei que criou o Sistema de Unidades de Conservação, o SNUC (Lei nº 9.985, DE 18.07.2000) transferiu instrumentos de gestão das unidades de conservação de proteção integral para as de uso sustentável, como planos de manejo e conselhos deliberativos. São instrumentos importantes mas que não atendem exatamente as prioridades das comunidades extrativistas. Desde que assumiu a presidência do ICMbio, a instituição responsável pelas unidades de conservação do país, Rômulo Mello vem modificando a compreensão que os órgãos ambientais tinham até então destes mecanismos. Mas um aspecto ele ainda não mudou e vem criando grandes problemas nas áreas: a existência de chefes da reserva. Em unidades de conservação de uso sustentável como as Resex e RDS, que resultaram de anos de lutas das pessoas que moram ali, ninguém mais quer saber de chefe; o que eles querem é gestão compartilhada efetiva, um conceito bem mais apropriado a essa realidade.

Outro desafio, talvez o mais crítico, é o desenvolvimento destas áreas, razão principal do seminário desta semana em Brasília. É preciso construir uma nova política que, ao mesmo tempo viabilize a exploração sustentável da importante biodiversidade amazônica, e a proteja. Nenhum outro país do planeta enfrentou desafio semelhante na escala do que temos que enfrentar.

A pergunta que nos fazemos é a seguinte: o governo militar criou a Zona Franca de Manaus e disponibilizou todos os tipos de incentivo e isenção fiscal para que empresas nacionais e multinacionais ali se instalassem para produzir bens de consumo e também quinquilharias que não tem nada a ver com a realidade da Amazônia. Do ponto de vista econômico é um típico enclave no meio da floresta. Mas um dos benefícios da Zona Franca foi gerar empregos urbanos sem exercer pressão sobre a floresta, embora pouco tenha representado em termos da economia da floresta.

E se os mesmos benefícios fiscais e tributários fossem alocados para a indústria dos produtos extrativistas, isso não poderia trazer um revolução para as população da floresta amazônica?

Outro tema relevante é a remuneração pelos serviços ambientais proporcionados pelas populações extrativistas para toda a sociedade brasileira e planetária. Não seria justo que erradicássemos a pobreza dessas áreas, que gerássemos um avançado sistema de educação e implantássemos pólos de alta tecnologia em compensação por esse serviço? E qual o estoque de carbono assegurado por estas áreas, quanto isso representa de emissões evitadas e quanto poderiam as populações ganhar neste mercado?
Estas e outras questões serão debatidas no seminário desta semana. Outros dados inéditos serão apresentados durante a reunião. Será mais um marco na longa e exemplar trajetória destas pessoas que ainda hoje se inspiram em Chico Mendes.

Concluo com uma fala de Julio Barbosa, que já foi presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros e prefeito de Xapuri, liderança histórica e respeitada do movimento dos seringueiros:

"A questão do desenvolvimento da Amazônia versus preservação vem convivendo com uma série de conflitos há bastante tempo, e a cada ano que passa essa relação entre produção e preservação vem agravando esses conflitos. O obstáculo que existe para nós, enquanto representantes de comunidades tradicionais, está exatamente no processo conceitual. Existe uma visão, que nós consideramos extremamente prejudicial para o processo de desenvolvimento da região, que é: 'quando se preserva você não pode explorar absolutamente nada'. Esse processo é extremamente equivocado quanto à história da Amazônia, porque a Amazônia foi ocupada ao longo de sua história por populações que ao mesmo tempo produziram e preservaram.

A nossa grande discussão agora é que não estamos mais vivendo no século XIX, estamos vivendo no século XXI e o desafio é a busca de melhoria e de qualidade de vida para essas populações que têm como garantia a preservação do patrimônio natural. Então, acho que esse é um desafio que existe na questão do extrativismo. Nós temos discutido isso há muitos anos, porque se avança tanto no Brasil na pesquisa da atividade agropecuária - em poucos anos a questão da soja no Brasil se fortaleceu com inúmeras pesquisas importantes; agora estamos na questão do biodiesel e do etanol; o Brasil já tem informações em quantidade acerca das potencialidades da produção do biodiesel e do etanol - e por quê em 100 anos não conseguimos avançar em nada em estudos para o desenvolvimento do extrativismo não-madeireiro? Da forma como estamos vivendo não dá para continuar; ou o extrativismo passa a ser um produto importante para o desenvolvimento da Amazônia ou teremos a nossa floresta sofrendo ameaças de desmatamento." Seminário o Futuro do Extrativismo, Belém, 17.10.2008.

segunda-feira, abril 27, 2009

O TRAÇADO POLÍTICO DA BR 319

Há mais de duas décadas discute-se o impacto ambiental e social de estradas na Amazônia. Quanto mais as análises se sofisticam, menos influência têm na decisão – sempre política – de fazer uma obra de infra-estrutura. Enquanto no passado existiam vetores sociais e financeiros de pressão, hoje a decisão é tomada em gabinetes de políticos desgastados e sem credibilidade; o debate público é irrelevante e não existem mecanismos suficientemente fortes que consigam colocar o interesse público acima do privado.

Na década de 1980, quando foi pavimentada a conexão entre Mato Grosso e Acre, pela BR 364, haviam vetores sociais e financeiros influenciando as decisões do poder público. Os recursos eram internacionais, do Banco Mundial ou do Banco Interamericano, e a pressão da sociedade criou condicionalidades para sua aplicação, como a criação de áreas protegidas e a proteção dos direitos indígenas. Foi nesse contexto que a Resolução N. 1 do Conama, de 1986, foi aprovada, determinando a realização de estudos de impacto ambiental para obras de infra-estrutura.

Havia também pressão social para que a regularização fundiária se antecipasse à pavimentação, evitando dessa forma a expulsão e perda de direitos pela valorização da terra no entorno da estrada. Foi nesse contexto, de questionamento à pavimentação a qualquer custo, que Chico Mendes denunciou ao BID a falta de cumprimento dos acordos firmados pelo governo brasileiro e acabou sendo assassinado. As reservas extrativistas foram criadas e os seringueiros moram lá ainda hoje em consequência das medidas que anteciparam a conclusão da estrada.

Hoje, a discussão se repete na pavimentação da BR 319, como se nada disso tivesse acontecido. A estrada, de 877 quilômetros, foi construída na década de 1970 para conectar Porto Velho/RO a Manaus/AM, no coração da Amazônia. Aberta durante o governo militar, está abandonada desde 1988 por falta de uso econômico. Como aconteceu em outros lugares da Amazônia, famílias do sul do país migraram para a beira da estrada e os que resistiram às doenças e ao isolamento ali permanecem até hoje. Povos indígenas e comunidades tradicionais também vivem ali, com ou sem estrada ou investimentos públicos.

A pavimentação da estrada foi incluída em 1996 no Programa Brasil em Ação de Fernando Henrique Cardoso, mas retirada por falta de justificativa econômica. Foi incluída novamente no Avança Brasil (2000-2003) e somente 158 km foram pavimentados em 2001. Planejada no Plano Plurianual do governo Lula para ser realizada em 2007, foi antecipada por decisão do Ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, que é do Amazonas e decidiu iniciar a obra em 2005, atropelando a legislação ambiental.

O desenvolvimento do Amazonas, centrado na Zona Franca de Manaus, tornou desnecessária a vinculação rodoviária com o país. Esse modelo trouxe benefícios ambientais pois evitou a pressão migratória sobre os recursos do estado, região que apresenta uma das menores taxas de desmatamento em toda a Amazônia.

Esse discurso, largamente utilizado pelo governador Eduardo Braga para captar recursos aos programas pioneiros que desenvolve no Amazonas, e prestígio internacional ao seu governo, tem prazo de validade. O asfaltamento da 319 irá nivelar o Amazonas aos demais estados da Amazônia levando para lá migração, pobreza urbana, violência, desmatamento, queimadas, exclusão social. Mas o tempo das decisões políticas não é o meso dos impactos que elas geram. Quando isso acontecer, ele não estará mais à frente do governo do Amazonas e sua biografia ambientalista não será afetada.

Depois de muita pressão da sociedade, exigência do Ministério Público e determinação do Ministério do Meio Ambiente, o Ibama está realizando Audiências Públicas para análise do Estudo de Impacto Ambiental. O trabalho foi realizado pela UFAM – Universidade Federal do Amazonas e se concentra no trecho localizado entre os kms 250e 655,7. Os debates ocorrem entre 22 e 28 de abril nas cidades de Humaitá, Porto Velho, Careiro e Manaus.

A associação Preserve Amazônia requereu uma nova audiência pública a ser realizada em Brasília, baseando-se na Resolução do Conama 09-87 que abre essa possibilidade a uma organização da sociedade civil. O objetivo é debater as falhas gravíssimas do EIA RIMA apresentado ao Ibama. O estudo pode ser acessado no site do Ibama, mas não pense que ele está visível como deveria – é preciso digitar no sistema de busca para que o estudo fique acessível. A análise do MMA sobre a obra também pode ser acessada no site daquele ministério, pelo mesmo mecanismo de busca.

A análise que segue está fundamentada em leituras de diferentes capítulos do pesado documento.

ARGUMENTOS PARA A PAVIMENTAÇÃO

O problema principal da BR 319 é que não existem justificativas econômicas para sua reativação e esse foi um dos pontos que procurei no EIA-RIMA. Encontrei a seguinte argumentação:

"No âmbito econômico, a rodovia tem como objetivo ser uma opção de escoamento da produção industrial de Manaus para o centro-sul país, fornecendo uma opção de modal, principalmente para produtos de alto valor agregado, que perdem competitividade pelo tempo de chegada ao mercado consumidor. Também promoverá o escoamento da produção agro-extrativista local tanto dos municípios produtores do interior em direção as capitais, quanto entre os municípios produtores. Este processo poderá constituir importante fator estimulador da economia dos municípios do interflúvio Purus-Madeira." (RIMA:7).

O pesquisador do INPA, Phillip Fearnside, já desmontou esse argumento em vários artigos: "Os produtos industriais de Manaus, como televisores e motocicletas, não são artigos perecíveis para os quais a diferença de alguns dias em tempo de transporte faria uma diferença significante. Remessa de tal frete por navio para o porto de Santos é muito mais eficiente, tanto em termos de uso de energia como de custos de mão-de-obra, quando comparado com a remessa em milhares de caminhões, independente da rota rodoviária" (Philip M. Fearnside e Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça, 2008).

Esse argumento de escoar produtos de Manaus também foi utilizado para justificar o asfaltamento da BR 163, de Santarém a Cuiabá, por um consórcio interessado em explorar a estrada. Quando o retorno econômico ficou desinteressante, o consórcio se desfez, a estrada ficou sob responsabilidade do governo federal, não foi asfaltada e virou mais um local de conflito social e desmatamento, antecipação do que também irá ocorrer na 319.

O argumento social para a pavimentação, apresentado no RIMA, também é inconsistente: "No âmbito social, a rodovia será de fundamental importância na promoção de maior acesso da população residente na área do interflúvio Purus-Madeira, grande parte assentada como parte do projeto original de construção da rodovia, a serviços básicos de saúde e educação, pois estes serviços se concentram em Manaus e Porto Velho" (RIMA:7).

O acesso a serviços de educação e saúde não acontece para a maioria da população pobre brasileira, mesmo aquela que está na periferia das grandes cidades. Vai demorar muito tempo para que alguém lembre que lá, em uma localidade perdida na 319, existem pessoas doentes precisando de auxílio. Pura demagogia!

Além disso, sabe de quantas pessoas estamos falando no eixo da estrada? Na Área de Influência Direta da BR 319, uma faixa de 5 km de cada margem da rodovia, no trecho entre os kms 250 e 655,7 existem 5 comunidades e 18 empreendimentos; dos municípios existentes na AID – Borba, Beruri, Tapauá, Manicoré e Humaitá - apenas este último tem sua sede urbana com acesso direto à rodovia.

Das cinco comunidades, duas são tradicionais (Comunidade São Sebastião do Igapó-Açu e Jacaretinga) e três são assentamentos rurais (Comunidade Realidade, Comunidade Fortaleza e Comunidade São Carlos):
Comunidade São Sebastião do Igapó-Açu: situada no km 255 da BR 319no município de Borba-AM, reúne um total de 40 famílias distribuídas ao longo da localidade.
Comunidade Jacaretinga: situada no km 340 da rodovia, situa-se nos municípios de Beruri e Manicoré, conta com um total de 8 famílias, distribuídas espaçadamente.
Comunidade Realidade: localizada no município de Humaitá, Amazonas, no km 594 da BR-319, sem indicação de número de famílias.
Comunidade Fortaleza: localiza-se no km 605 da Rodovia BR-319, na margem da estrada, é formada por casas isoladas que ficam até 1 km de distância uma das outras e possui cerca de 28 famílias.
Comunidade São Carlos: localiza-se no km 645, possui entre 12 e 15 famílias distribuídas espaçadamente ao longo do trecho.

Como não existe o número de pessoas residentes na comunidade Realidade e na São Carlos o total varia entre 12 e 15... o total de pessoas na Área de Influência Direta da estrada fica entre 88 e 91 famílias e entre 440 e 455 pessoas, considerando uma média de 5 pessoas por família. Algumas das famílias que moram na estrada ali se estabeleceram na década de 70; outras chegaram há 3 anos, já por influência da pavimentação.

Só que algumas dessas famílias não serão beneficiadas diretamente pela estrada porque estão localizadas no leito ou próximas a pontes, serão desapropridadas e reassentadas para que a pavimentação seja realizada. Na Comunidade do Igapó-Açu 12 das 40 famílias serão desapropriadas e na Comunidade Realidade serão 7 famílias de um total não registrado no estudo.

Ou seja, estamos falando de benefícios sociais para menos de 500 pessoas! Mas, como antecipa o RIMA... "Até o momento [a estrada] apresenta esta área baixa densidade populacional, que tenderá a aumentar em virtude da recuperação da rodovia".

A justificativa geopolítica para a pavimentação da estrada está baseada em dois argumentos: um, a conexão com a controversa Iniciativa para Infra-estrutura da América do Sul – IIRSA que prevê a integração da América Latina por meio de obras de infra-estrutura; de acordo com o RIMA, a BR 319 será um eixo de integração rodoviária do norte ao sul da América do Sul.

O outro argumento ressuscita as tradicionais ameaças de internacionalização da Amazônia alertando para os riscos de "uma certa intervenção internacional através de organizações governamentais e até mesmo governos" utilizando como exemplo a Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica lançada em 2006 pela Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional – USAID, com o objetivo de "prover apoio aos governos e à sociedade civil da Bacia Amazônica nos seus esforços para conservar o único e globalmente importantes recursos biológicos e serviços ambientais da Bacia" com recursos de US$ 50 milhões para serem aplicados em programas de conservação com organizações não- governamentais e governamentais na bacia amazônica.

Afirma o documento que a rodovia irá propiciar uma maior presença do Estado brasileiro em áreas estratégicas e vulneráveis. "Dentre outros aspectos, a presença do Estado, com seu poder de polícia, poderá evitar a ocorrência nesta região de processos de colonização não controlados como aqueles que ocorreram no Sul do Pará", afirma o documento. Mas o Estado não é essa entidade neutra, sabemos disso, uma vez que foi ele mesmo que promoveu o caos fundiário no Pará, no passado.

AVALIAÇÃO DE IMPACTOS

O documento mais interessante é o volume 5 - Prognóstico Ambiental e Avaliação dos Potenciais Impactos Ambientais, onde estão os impactos detalhados sobre o meio físico, biótico e socioeconômico.

As tabelas seguem o padrão tradicional dos estudos de impacto ambiental e concentram-se mais nos efeitos diretos da obra em si e do que na análise integrada dos impactos decorrentes das mudanças sócio-econômicas que a estrada irá produzir. São apresentados como impactos pontuais que aparentemente não causam grandes danos e poderiam ocorrer em qualquer estrada, em qualquer lugar do país. Por exemplo, não há registro de impacto da retirada da cobertura vegetal sobre o meio físico. Esse impacto aparece no meio biótico, associado às etapas de "topografia e cadastro, abertura de acessos, implantação de canteiros e alojamentos, e travessia de cursos de drenagem", ou seja, à construção física da estrada e não às consequências econômicas derivadas da forma como a estrada é aberta.

Também está na análise do impacto sobre o meio biótico a menção a desmatamento, descrito como uma consequência previsível e inevitável da obra: "Os resultados para a paisagem do asfaltamento de estradas na Amazônia brasileira são muito bem conhecidos e documentados. Na história dos processos de desenvolvimento ocorridos no Brasil, ainda não há precedente para sugerir que o resultado desta obra possa ser diferente. Além disso, o sinergismo desta obra com as já em andamento na região geral, como o gasoduto Urucu-Porto Velho e as hidreléticas do Madeira, também levará a resultados já calculados. Consequentemente, as previsões de modelagem representam de fato a única descrição sistemática e tecnicamente corroborável do impacto na paisagem da obra para esta região. As modificações na paisagem previstas por estes modelos significam a degradação ou alteração dos ambientes naturais em mais que 50% de sua extensão geográfica dentro do interflúvio" (Vol. 5:49).

Os impactos sócio-econômicos da rodovia constituem uma lista sem hierarquia onde estão misturados aspectos positivos e negativos sem qualificação nem avaliação de conexão entre eles. A organização que eu fiz em duas colunas evidencia ainda mais a fragilidade dos argumentos e a ausência de peso e interrelação entre os fatores. Essas variáveis, de tão vagas e descontextualizadas, podem ser aplicadas a qualquer estudo de impacto ambiental em qualquer lugar do planeta.

Negativos
- Perturbações ao patrimônio arqueológico.
- Enfraquecimento e vulnerabilidade de ordem social.
- Despovoamento de terras indígenas.
- Conflitos entre populações locais e migrantes.- Acidentes decorrentes da circulação rodoviária.
- Ocupação desordenada nas áreas do entorno.
- Incidência dos casos de doenças de veiculação hídrica.
- Alteração da estrutura fundiária.
- Incidência dos casos de dengue, leishmaniose tegumentar, malária e febre amarela.

Positivos
- Alteração na mobilidade espacial.
- Alteração nas demandas por bens e serviços públicos.
- Aumento dos rendimentos, na oferta de postos de trabalho e nas arrecadações públicas.
- Facilitação do escoamento da produção.
- Potencialização do turismo local e oportunidade de acesso a cultura e lazer.
- Fortalecimento de associações e cooperativas.
- Diminuição da evasão escolar, facilidade no acesso ao ensino médio, superior e capacitação profissional.
- Conhecimento da região.
- Ampliação e eficiência de alternativas rodoviárias.
- Aumento da governança e da integração regional.
- Recuperação de passivos ambientais criados pela abertura da estrada.

Os programas apresentados para compensar e mitigar os impactos são genéricos e de eficácia duvidosa uma vez que não diferem em nada de estudos formulados para outras realidades do país.

ALTERNATIVAS LOCACIONAIS E CENÁRIOS

A análise, obrigatória, de alternativas locacionais para o empreendimento está fundamentada em duas possibilidades: considerando o empreendimento implantado (nas modalidades rodoviária, ferroviária e hidroviária) e não implantado. Mas a comparação com outras modalidades, na verdade, não ocorreu, como pode-se observar na transcrição a seguir (Vol. V pgs 65-67):

Empreendimento implantado:

1) "Especial atenção foi dispensada ao modal rodoviário em razão de estar disponível para ele o projeto executivo. A rodovia BR-319 é uma rodovia já implantada e as fases de trabalho que antecedem a terraplenagem já foram executadas. Tecnologicamente, a recuperação do trecho em análise da rodovia BR-319 não trará maiores conseqüências ambientais adversas em razão de se tratar de uma rodovia já implantada há mais de três décadas. Em adição, como não serão implementadas alterações no traçado atual, ou seja, não se justificam alternativas locacionais, os riscos de novos impactos ambientais sobre os meios físico e biótico decorrentes das obras de recuperação do empreendimento serão mínimos".

2) "Aspectos tecnológicos de uma possível ferrovia foram também considerados. Porém, a não existência de um projeto executivo e análise econômico-financeira profunda inviabilizam conclusões fundamentadas".

3) "No que diz respeito ao modal hidroviário, argumenta-se que ele é a grande vocação para a Amazônia, no que concerne principalmente ao transporte de carga. Em termos tecnológicos é necessário que sejam consideradas as ampliações e melhorias tendo como base a experiência do setor privado na hidrovia do rio Madeira. Uma hidrovia seria complementar a rodovia e uma integração futura poderia potencializar benefícios e minimizar custos econômicos e ambientais".

Empreendimento não implantado

4) "Considera-se empreendimento não implantado a não recuperação e asfaltamento do trecho objeto deste estudo. Neste caso, a tendência observada atualmente permanecerá, ou seja, o trecho continuará a deteriorar-se tornando o seu uso cada vez mais restritivo. Ambientalmente, tal fato pode, em uma primeira análise, parecer bom, uma vez que pressões antrópicas decorrentes da operação normal da rodovia não ocorrerão. No entanto, isso pode não acontecer exatamente assim. A não existência da estrada implica em ausência do Estado e, por conseguinte, uma grande vulnerabilidade em termos de uso ilegal dos recursos naturais. Deste modo, o avanço desordenado do cultivo de gado e de soja, da retirada de madeira e da grilagem, no sentido Sul-Norte, continuaria a acontecer, usando estradas precárias, construídas ilegalmente".

Por fim, no que se refere aos cenários, foram elencadas quatro possibilidades: reconstrução da estrada "sem governança", com "baixa governança", com "forte governança" e "o mesmo de sempre". Toda a segurança de que os impactos da estrada serão controlados depende exclusivamente da forte presença do Estado na área. Não há nenhum outro elemento institucional, social ou político que possa desempenhar esse papel. Ora se é o Estado o promotor da obra e dos impactos, como confiar somente nele para que ações de controle aconteçam?

Não há, portanto, a menor confiabilidade de que o processo na BR 319 será diferente de todas as outras obras de infra-estrutura já implantadas na Amazônia. Pior que isso, quando se trata de analisar o cenário chamado de "o mesmo de sempre" a opção é a manutenção da tendência histórica sem a implantação de uma nova via de acesso entre Manaus e Porto Velho, o que significa, na visão dos autores, "a aceleração da ocupação desorganizada e predatória".

CONCLUSÃO

Uma análise conservadora diria que o Estudo de Impacto Ambiental da BR 319 produzido pela UFAM, deveria ter sido capaz de gerar um avanço em relação às análises convencionais, por duas razões: primeiro, pelo acúmulo existente em relação a análises de impacto de estradas na Amazônia; segundo, por se tratar de uma estrada que irá conectar a área menos alterada da Amazônia à de maior pressão, o eixo do desmatamento. Ou seja, não é uma estrada qualquer.

Uma análise crítica diria que o o Estudo de Impacto Ambiental da BR 319 produzido pela UFAM, deveria ser refeito para dimensionar de forma adequada os impactos físicos, bióticos e socioeconômicos de maneira a fundamentar alternativas de infra-estrutura de desenvolvimento não convencionais. Por exemplo: analisar o impacto econômico, social e ambiental de fechar a estrada e apresentar medidas como a intensificação da urbanização, inclusive realocando o pequeno grupo de pessoas que mora lá para as cidades próximas; realizar conexões horizontais entre as cidades mais povoadas e o rio Madeira; modernizar o transporte fluvial e aéreo entre Porto Velho e Manaus; aplicar os recursos previstos para a pavimentação na consolidação das unidades de conservação criadas, na educação e na saúde das populações já residentes.

Utilizar R$600 milhões dos impostos pagos por nós, contribuintes de todo o país, em tempos de crise e contenção, para uma obra localizada em um estado do país, que não tem viabilidade econômica, não traz benefícios sociais e implica em alto impacto ambiental, é um crime financeiro e ambiental com o qual não podemos compactuar.

Bibliografia citada:

FEARNSIDE, Philip M. e Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça, 2008. Anais da IV Jornada de Seminários Internacionais sobre Desenvolvimento Amazônico. Volume 3. FIAM – Feira Internacional da Amazônia, Manaus, 10 a 13 de setembro.

UFAM-DNIT. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL - EIA E RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL – RIMA. 2009. Obras de reconstrução/pavimentação da rodovia BR-319/AM, no segmento entre os km 250,0 e km 655,7.

sábado, abril 04, 2009

KATOOMBA CUIABÁ

Quando o motorista de taxi que você pega começa a falar sobre o assunto técnico com o qual você trabalha todo dia, fechado em seu gabinete, é porque o tema pegou.

Foi assim na Rio 92 quando os taxistas, impressionados com aquele turbilhão de gente diferente que eles transportavam de um lado ao outro da cidade, passaram a querer saber o que era essa tal de 'biodiversidade'. Também em Curitiba, durante a COP-8, as pessoas e os temas globais ficaram mais perto do motorista que, de repente, via no seu taxi a mesma pessoa que aparecia mais tarde na televisão. Esses eventos internacionais, que mudam por alguns dias a rotina das cidades, estimulam a curiosidade e ampliam horizontes.

Esta semana, em Cuiabá, durante o evento do Katoomba Group sobre desmatamento e clima, o motorista do taxi que eu peguei perguntou: 'Vocês estão discutindo a mudança do clima?' Eu disse que sim e ele começou a descrever o que estava acontecendo em Cuiabá. Falou que Cuiabá é e sempre foi uma cidade muito quente, mas as pessoas já estão acostumadas com isso. Em janeiro, porém, disse ele, o calor foi a 42 graus e as pessoas não sabiam mais o que fazer para suportar. Falou que antes, ele andava pelo norte do estado e só tinha floresta, o clima era ameno, e agora é só estrada, desmatamento e calor. Estava intrigado. Mas diferentemente do que acontece quando se critica uma ação ou omissão do governo e só o ato de culpar alguém já dá a sensação de que existe uma solução, neste caso, ele ficou calado ao final da conversa. Claramente não sabia a quem responsabilizar.

As mudanças climáticas vêm gerando essa sensação de estranhamento diante de um fenômeno novo, que a pessoa constata no seu dia a dia, mas a causa não está ao seu alcance, não consegue entender a lógica, prever as consequências e vislumbrar culpados.

Katoomba em Cuiabá

Esta semana aconteceu em Cuiabá o 14º encontro do Katoomba Group, com mais de 1000 inscritos, que discutiu o tema "Evitando o desmatamento na Amazônia: REDD e Mercados PSA" http://www.katoombameeting2009.com.br/. Foi uma uniciativa da organização norte-americana Forest Trends e do governo do Mato Grosso.

Forest Trends foi criada em 1996, quando um pequeno grupo de líderes da indústria florestal, doadores, e grupos ambientalistas começaram a se reunir para analisar os desafios enfrentados pela conservação da floresta e identificaram referências em comum. Decidiram criar uma organização nova - http://www.forest-trends.org/ – para superar dificuldades e construir uma ponte entre esses setores e promover abordagens de mercado para a conservação da floresta.

Em 1999, o Forest Trends lançou o Katoomba Group http://www.katoombagroup.org/, uma rede internacional de pessoas envolvidas com o debate, a conscientização e a promoção de temas relacionados a mercado e serviços ambientais. O primeiro encontro aconteceu em 2000 em Katoomba, na Austrália, e o 14º essa semana em Cuiabá. O grupo promove troca de idéias e informações estratégicas sobre mercado para serviços ambientais (carbono, água e biodiversidade).

Michael Jenkins, presidente do Forest Trends e do Katoomba Group, explicou o contexto no qual se realizou a reunião de Cuiabá: "O desmatamento de florestas tropicais é responsável por pelo menos 20 por cento das emissões antropogénicas dos gases de efeito estufa em todo o mundo. No Brasil, 70 por cento das emissões dos gases de efeito estufa são provenientes do desmatamento na região Amazônica. Apesar deste fato, o Protocolo de Kyoto – principal tratado internacional para abordar mudanças climáticas – exclui a preservação de florestas em "pé" (conhecida como desmatamento evitado) e iniciativas para evitar a degradação florestal da lista dos tipos de projetos elegíveis para gerar créditos de redução de emissão. Recentemente, o interesse em REDD – Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação – tem aumentado rapidamente e a comunidade internacional está se esforçando para criar incentivos para evitar o desmatamento. Estão emergindo muitas oportunidades para definir as metodologias e capacitação para o REDD em áreas de floresta, para que o REDD seja incorporado no acordo pós-Kyoto, o qual será concluído em dezembro desse ano na 15ª Conferência das Partes em Copenhague".

A reunião do Katoomba em Cuiabá, ao contrário de muitas outras que têm abordado desmatamento e mudança climática, foi marcada por um forte otimismo e por uma crença – talvez exagerada – de que compensações financeiras poderão finalmente se associar à proteção das florestas amazônicas. Um recurso já está disponível, o do Fundo Amazônia - US$110 milhões, a primeira parcela de um total de US$1 bilhão a ser desembolsado em cinco anos como doação do governo da Noruega. O Fundo poderá crescer rapidamente já que vem se consolidando a percepção de que apoiar os países que detém florestas é um meio eficiente de controlar as mudanças climáticas. Vai depender também dos resultados que forem alcançados pelo governo no controle do desmatamento. O Fundo Amazônia é uma amostra das mudanças que poderão ocorrer se a inclusão de ações de proteção das florestas passar a fazer parte do mercado de carbono.

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http://www.secom.mt.gov.br/ng/galeria.php?id=2&idfoto=69094

Existem mudanças importantes que justificam o otimismo. Um exemplo são as iniciativas dos governos regionais, que tiveram início em 2008 nos Estados Unidos sob a liderança do governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger. Diante da posição do governo Bush de não reconhecer a influência humana sobre as mudanças climáticas e não assumir compromissos de diminuir suas emissões, a Califórnia decidiu legislar de forma autônoma. Essa iniciativa já contaminou outros países como Brasil, Canadá, China e União Européia. O Amazonas já tem sua lei estadual de mudanças climáticas, o Acre está elaborando a sua.

Michael Jenkins se refere a essas ações recentes: "Em novembro de 2008, os governos dos Estados Unidos, Brasil, Canadá, China e União Européia, bem como outros governos de regiões chaves se reuniram para discutir e chegar a um acordo sobre as ações específicas que cada grupo poderia realizar para reduzir as emissões resultantes do desmatamento ao redor do globo. Um acordo desse tipo foi assinado entre o governador Blairo Maggi do Mato Grosso e os governadores dos estados da Califórnia, Illinois e Wisconsin, no qual as partes concordam em coordenar esforços na luta contra o aquecimento global".

A ida de governadores da Amazônia à Califórnia também gerou motivações importantes de mudança. Isso também ocorreu na Reunião do Katoomba Group no ano passado em Washington. Lá, o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi foi o principal orador para uma enorme e qualificada platéia. E foi lá que ele ofereceu o Mato Grosso para sediar o encontro do Katoomba.

Há também um outro fator a considerar. Grandes organizações não governamentais como TNC (The Nature Conservancy), IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Conservação Internacional vêm se associando a governos e empresas para induzir mudanças em sistemas de produção em áreas críticas da Amazônia. Ocorre que, na prática, o resultado é mais amplo – a cabeça das pessoas também muda e esse é o principal resultado visível desses encontros internacionais e de projetos de parceria. O acesso a informações e a compreensão das causas que justificam as pressões que sofrem hoje os desmatadores e poluidores, contribuem para mudar a postura das pessoas.

São todos ambientalistas?

Foto: Edson Rodrigues/Secom-MT Descrição: Governador Blairo Maggi e Cacique Aritana, no Katoomba

Decididamente poucos acreditam que só fiscalização e criminalização resolvem o problema do desmatamento. Além de aplicar a lei é preciso assegurar que a floresta em pé tenha mais valor que a derrubada, frase cunhada por Chico Mendes na década de 1980 e agora está na boca de todos os governadores da Amazônia. Esse é um objetivo que une fazendeiros e seringueiros desde que derrubar ilegalmente traga prejuízos e proteger traga renda e benefícios.

Achei os governadores bastante motivados para regularizar as ilegalidades fundiárias e econômicas existentes em seus estados para poder se candidatar aos fundos que começam a surgir. Os recursos vão existir – talvez não em volumes tão altos nem certamente disponíveis par todos; será necessário cumprir um conjunto grande de metas nacionais e locais de diminuição do desmatamento para acessar estes fundos. E não são metas de um dois anos, mas de décadas.

Ironicamente, para povos indígenas e comunidades tradicionais, que sempre protegeram as florestas, as perspectivas não são tão interessantes no curto prazo. Eles alegam que as novas iniciativas premiam quem já desmatou e agora pode receber crédito e recursos para recuperar áreas alteradas. Há o risco de se criar um incentivo perverso, ou seja, um estímulo a desmatar para depois ser pago para reflorestar. Ou seja, serão compensados os que degradaram, para que recuperem suas áreas e os que pretendem desmatar para que não o façam; mas quem vive da floresta há gerações sem alterá-la de forma significativa, ou em áreas que não estão sob pressão de desmatamento, não tem nenhum mecanismo oficial, até agora, de recompensa em larga escala e valores relevantes.

Está em discussão um projeto de lei para autorizar o governo a pagar por serviços ambientais prestados exatamente por aqueles grupos que exploram os recursos naturais sem destruí-los e nada recebem em troca; ao contrário, na maioria dos casos, vivem em grande pobreza. Essa seria uma política que poderia colocar em pé de igualdade os protetores antigos e os convertidos recentes.

A reunião do Katoomba Group em Cuiabá foi considerada um sucesso técnico e político. Faltou maior presença das comunidades tradicionais e dos indígenas nos debates. Esforços voltados para capacitar as pessoas nestes temas novos e áridos estão sendo realizados pelo Forest Trends e pelo IPAM. Iniciativas para acessar créditos de carbono no mercado voluntário vêm sendo preparadas por vários grupos, o que deve, aos poucos tornar todas essas siglas mais familiares ao público.

A próxima reunião dos governadores da Amazônia – que hoje se organizaram em um fórum no âmbito do PAS (Plano Amazônia Sustentável) com encontros regulares, liderados pelo ministro Mangabeira, quer colocar o tema REDD - Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação na agenda. É importante que essas questões sejam internalizadas no PAS, tanto em benefício dos governos estaduais quanto da sociedade; ou seja, a discussão precisa ser ampliada.

A meta é que o Brasil consiga chegar em Copenhague com uma posição forte e unida em torno da idéia de que proteger a florestas é essencial para o clima e que os protetores das florestas, principalmente as populações tradicionais, precisam ser compensados por esse serviço que prestam à humanidade.

Existem avanços e isso é inegável, mas os objetivos podem não ser os mesmos para todos os grupos. O primeiro teste será a implementação do Fundo Amazônia. Há um enorme déficit social na Amazônia que não será coberto pelo Fundo. Assim é preciso que as políticas de desenvolvimento local sejam mais eficientes para que aquelas pequenas comunidades que vivem lá, isoladas na mata, também possam acessar recursos adicionais. Para isso é preciso que os recursos cheguem nas mãos de quem de fato protege a floresta. É fundamental, também, que se estabeleçam rídigos mecanismos de monitoramento para que os objetivos de parar o desmatamento sejam realmente atingidos.

O Fundo Amazônia, que está sendo administrado pelo BNDES, deve se inspirar em outros exemplos já existentes no governo federal de transferência de recursos para projetos na Amazônia, como o PPG7 (Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais) e o Programa de Extrativismo, ambos no Ministério do Meio Ambiente, para evitar erros já superados no passado.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Chico Mendes: vivo látex

Esta é um entrevista que concedi a Adriano Belisário, da Revista de História da Biblioteca Nacional http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2113

Chico Mendes: vivo látex

Quando cortado, o caule da seringueira produz o látex. Para a árvore, ele serve para cicatrizar o ferimento causado pela secção. Para o homem, a possibilidade de produzir borracha a partir da substância a tornou sinônimo de riqueza.

Nascido no Acre, Francisco Alves Mendes Filho trabalhou nos seringais por anos. Pôde observar de perto os conflitos entre trabalhadores e patrões. Também estava atento ao crescente desmatamento que, para abrir espaço aos pastos, substituía o silencioso cair das gotas da borracha pelo barulho das moto-serras.

Pois, quando ferida, a Amazônia produziu Chico Mendes. Como o látex, ele valorizou e preservou a floresta. Chico enriqueceu simbolicamente a causa ambientalista, dando destaque internacional às lutas dos seringueiros. Sua proposta de unir conservação da natureza e atividade humana representava uma ruptura nos paradigmas da época.

Sua morte em dezembro de 1988 o tornou um mártir. No entanto, ele não foi o único responsável pela grande projeção das lutas dos seringueiros. A antropóloga Mary Allegretti colaborou com ele na década de 80 e ganhou diversos prêmios internacionais em reconhecimento a seu trabalho de preservação do meio ambiente. Nesta entrevista à Revista de História, Mary conta detalhes de sua convivência com Chico, seu legado para a Amazônia e avalia os avanços na preservação da região.

RHBN - Quando você foi à Amazônia a primeira vez?

Mary Alegretti - Fui ao Acre em 1978 para fazer a pesquisa da minha tese de mestrado. Estudava as mudanças nas relações de trabalho geradas pelas empresas agropecuárias que estavam se implantando na região. Havia também previsto uma rápida pesquisa em um seringal para compreender melhor as causas das mudanças e dos conflitos que estavam sendo denunciados nos jornais.

Impressionou-me o fato de ter encontrado um seringal produzindo borracha de forma muito semelhante ao que está descrito na literatura sobre o tema. Havia o sistema de aviamento, que trocava toda a borracha produzida pelos seringueiros por mercadorias compradas no barracão; as contas-correntes de cada seringueiro, sempre manipuladas para que eles ficassem devendo permanentemente; o pagamento de renda pelas estradas de seringa e a obrigatoriedade de entregar toda a borracha ao patrão, o seringalista; havia o comportamento submisso e ao mesmo tempo rebelde dos seringueiros.

Enfim, era difícil entender como esse sistema continuava se mantendo enquanto a borracha da Amazônia há muito tempo havia sido substituída pela produzida no sudeste da Ásia.

Levei algum tempo para entender que o governo brasileiro subsidiava o preço da borracha aos seringalistas e mantinha, dessa forma, esse sistema de semi-escravidão. Os seringueiros, analfabetos e sem acesso a qualquer tipo denúncia, permaneciam invisíveis e ocultos dentro das florestas acreanas. Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) estavam sendo formados naquele momento, mas havia ainda muita desconfiança.

Essa realidade dos seringais me chocou porque não achava que ainda existisse esse sistema de trabalho no Brasil. E o analfabetismo, que contribuía para tornar o seringueiro submisso, me indignou de tal forma que saí dessa pesquisa com a firme decisão de que iria fazer uma escola na mata para mudar essa situação.

RHBN - E como conheceu Chico Mendes?

Mary Alegretti - Conheci Chico em 1981 no Acre, na redação do Jornal Varadouro. Fui fazer uma entrevista com ele por sugestão do editor do jornal. Chico era filho e neto de seringueiros e havia passado sua infância e juventude ao lado do pai cortando seringa, próximo à fronteira com a Bolívia. Com 11 anos, a família se transferiu para o seringal Cachoeira, no município de Xapuri, no Acre, onde seus parentes vivem até hoje.

Diferentemente dos outros seringueiros, porém, Chico aprendeu a ler quando tinha 16 anos, com um refugiado político, Euclides Fernandes Távora, que morava em uma colocação próxima à da sua família. Esse fato teve uma grande influência na sua vida. Quando começaram a ser formados os sindicatos no Acre, ele logo participou e foi secretário da primeira diretoria do STR de Brasiléia, criado em 1975 e presidido por Wilson Pinheiro.


A situação do Acre era crítica naquele momento, em termos de conflitos fundiários. A mudança de política para a Amazônia, durante o regime militar, levou uma profunda crise aos seringais. O governo acabou com a política do monopólio da borracha, que protegia os preços. Os seringalistas, endividados, venderam os seringais para empresas agropecuárias do sul do país. Mas os seringais foram vendidos com os seringueiros dentro e os conflitos foram tão violentos que a Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) foi para o Acre defender os posseiros e criar os sindicatos.

Em 1977, Chico Mendes ajudou a criar o STR de Xapuri e foi convidado a se candidatar a vereador pelo MDB. Quando eu o conheci ele estava no segundo ano do mandato de vereador e continuava fortemente ligado ao sindicato.

Ele me impressionou muito porque me mostrou uma realidade totalmente diferente daquela que eu havia pesquisado. Enquanto os seringueiros do vale do Juruá continuavam "cativos" aos patrões, como eles diziam, os do vale do Acre eram "libertos", vendiam a borracha por conta própria e não pagavam mais renda. O problema que eles enfrentavam era outro: perda dos meios de vida com a destruição das seringueiras e castanheiras para implantação das pastagens.

Desde 1976 os seringueiros estavam lutando contra os desmatamentos por meio de um movimento inventado por eles e liderado por Wilson Pinheiro, os "empates". Eles se reuniam com suas famílias, iam para as áreas ameaçadas de desmatamento, desmontavam os acampamentos dos peões e paravam as moto-serras.

Em função destes conflitos, em 1980, Wilson Pinheiro foi assassinado dentro da sede do Sindicato, em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia. Uma grande manifestação que ocorreu logo depois, inclusive com participação do então líder metalúrgico Lula da Silva, levou todos ao enquadramento na Lei de Segurança Nacional por incitamento à violência. Quando eu conheci Chico ele estava chegando da audiência ocorrida no tribunal militar de Manaus. Anos depois eles foram inocentados por falta de provas, mas os prejuízos às suas vidas já haviam sido feitos.

RHBN - Quais eram as lembranças de Chico sobre Euclides Távora?

Mary Alegretti - Chico dizia que havia tirado a sorte grande por ter tido a oportunidade de aprender não só a ler e escrever, mas a pensar, com a convivência com Euclides Távora. Ele disse que não sabia a origem de Euclides e que somente quando ele ficou doente, um pouco antes de ir embora procurar tratamento, revelou quem era. Na minha dissertação de doutorado organizei a sua fala sobre esse fato, compilando de várias entrevistas dadas por ele:

Até hoje ninguém conseguiu comprovar a existência de Euclides Távora e dos fatos relatados por Chico. É um bom tema para um estudante de pós-graduação em história.

RHBN - Como foram os trabalhos desenvolvidos com Chico?

Mary Alegretti - Chico Mendes lutou pelos seringueiros e pela floresta de 1965 a 1988, mas somente obteve reconhecimento um pouco antes de ser assassinado. Quando o conheci, ele era discriminado em quase todos os lugares onde andava. Achavam que ele exagerava nas denúncias de desmatamento, que era muito independente politicamente, e eram raros os que acreditavam no que ele falava. Vivia quase sem recursos. Quando não estava andando pelos seringais, estava à frente da velha máquina de datilografia do STR de Xapuri.

Em 1983, assim que acabou seu mandato de vereador, já no Partido dos Trabalhadores, que ajudou a fundar no Acre, Chico foi eleito presidente do STR de Xapuri. Em 1982, começamos a organizar o Projeto Seringueiro para fortalecer o movimento contra os desmatamentos em Xapuri. Larguei a Universidade Federal do Paraná, onde era professora assistente de Antropologia, para trabalhar com uma pequena equipe no Projeto Seringueiro.

Em 1985, novamente juntos, organizamos o primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros em Brasília. Mais de 100 seringueiros criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros, como entidade representativa, e elaboraram uma proposta original de reforma agrária: as reservas extrativistas. Decidiram que não queriam o modelo convencional de lotes individuais, mas sim uma reforma baseada na exploração da floresta e dos seus recursos. À semelhança das reservas indígenas, seriam reservas destinadas aos extrativistas, com propriedade da União e usufruto dos seringueiros por meio de concessão de uso.

Depois do Encontro Nacional, Chico começou a ser mais ouvido. Era convidado a dar palestras e a falar sobre a luta dos seringueiros, totalmente desconhecida no país. Mas a sua projeção internacional foi resultado da ação de Adrian Cowell, cinegrafista inglês que filmou o Encontro Nacional e decidiu acompanhar o dia a dia do trabalho do Chico a partir dali. Em 1987 ele lançou internacionalmente um documentário – "Eu Quero Viver" – onde mostrou a luta do Chico para proteger a floresta.

A repercussão foi muito grande e ele foi indicado ao prêmio de meio ambiente da ONU. Essa idéia, de proteger a floresta usando os seus recursos, era muito nova porque a prática até então era de proteger as florestas sem a presença humana. O exemplo dos seringueiros modificava todos os paradigmas de conservação existentes até então.Mas ao mesmo tempo em que Chico conquistava o respeito internacional, era mais ameaçado em Xapuri. Os empates terminavam em prisão. As promessas de regularização dos conflitos fundiários não se concretizavam. A idéia de criação de reservas extrativistas se arrastava na burocracia federal.

Nesse contexto, um fazendeiro, Darly Alves, decidiu grilar e desmatar uma área dentro do seringal Cachoeira, a área onde Chico e sua família sempre viveram. Era um confronto direto com o sindicato e com Chico. Os seringueiros empataram o desmatamento e o confronto levou à criação do PAE Cachoeira.

Chico descobriu que Darly Alves, que com seus filhos viviam ameaçando de morte as lideranças em Xapuri, havia sido julgado por crimes cometidos no Paraná e era foragido da justiça. Conseguiu um mandado de prisão e entregou à Polícia Federal em Rio Branco. Nada foi feito e a perseguição adquiriu um caráter cada vez mais de vingança pessoal de Darly contra Chico. Em 22 de dezembro de 1988, dois filhos de Darly fizeram uma tocaia nos fundos da casa de Chico e o assassinaram.

A repercussão foi imediata e ocorreu no mundo inteiro. A indignação foi forte e se refletiu em seguida no Brasil. A imprensa brasileira, que até então ignorara a luta dos seringueiros e nunca abrira espaço para Chico Mendes, procurou recuperar o tempo perdido. A forte reação e pressão da opinião pública levaram à condenação dos criminosos em 1990, fato inédito na justiça rural no Brasil.

RHBN - Onde você estava no dia da morte dele? Como recebeu a notícia?

Mary Alegretti - Em novembro de 1988, fui a uma conferência sobre florestas tropicais organizada no Japão para apresentar a proposta de reservas extrativistas em um contexto internacional de formulação de políticas florestais. Após o evento, fui à Malásia conhecer os famosos seringais de cultivo que haviam sido implantados com as sementes de seringueira roubadas da Amazônia e conhecer o modelo de exploração usado por pequenos agricultores.

Ao voltar, em Nova York, na madrugada do dia 23, recebi a notícia do assassinato do meu amigo e parceiro de tantas lutas. Saí na mesma hora, debaixo de neve, de lá para Miami, peguei o avião para Manaus e, no dia 24, às 8 horas da manhã eu estava em Rio Branco. Ao meio dia em Xapuri, velando o corpo do Chico e dividindo minha imensa tristeza com muitos seringueiros que foram para a cidade, em convocação feita pelo Chico, para uma grande assembléia do Sindicato, que seria realizada logo depois do Natal.

O assassinato do Chico para todos nós representou o fim de uma luta grandiosa que não havia levado a quase nenhuma conquista. Os seringueiros haviam alcançado muito pouco com tanto esforço e sacrifício pessoal – entre 1987 e 1988 foram assassinadas outras quatro lideranças sindicais em Brasiléia e Xapuri. Era como se tivéssemos perdido as esperanças. E embora todos tenham jurado dar continuidade à luta pela qual Chico morrera, as perspectivas eram muito limitadas. Não tivesse acontecido a repercussão internacional e nacional ao assassinato dele, provavelmente não teríamos alcançado nada.

RHBN - E o legado deixado por Chico Mendes? Houve avanços concretos na preservação da floresta?

Mary Alegretti - O legado deixado por Chico Mendes é imenso. Existem hoje duas categorias de unidade de conservação inspiradas em suas idéias: reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, ambas parte do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Esse é um legado importante que beneficia mais de 500 mil pessoas. A criação de uma unidade de conservação de uso sustentável elimina conflitos, assegura direitos e cria uma expectativa de vida para as famílias que ali vivem.

Outro legado importante é exatamente esse conceito de unidade de conservação de uso sustentável que, ao mesmo tempo em que regulariza a questão fundiária, possibilita a conciliação entre proteção do meio ambiente e desenvolvimento sustentável e eliminação da pobreza. Antes do movimento dos seringueiros toda teoria de conservação evitava a presença humana e a pobreza era considerada uma das maiores causas de degradação ambiental. Hoje, esse conceito é reconhecido no mundo todo como exemplar para comunidades que vivem em países com florestas tropicais.

O legado de Chico Mendes não é só de conquistas. É também de impasses. A reserva extrativista é uma espécie de contrato entre os moradores e gestores da área e o Estado. Cabe aos primeiros proteger os territórios e usar os recursos de forma sustentável; cabe ao segundo, viabilizar recursos e políticas de educação, saúde, desenvolvimento econômico; cabe também ao governo fiscalizar, evitar invasões e assegurar a parceria na gestão destes territórios. O poder público se concentrou mais em criar novas unidades do que em implementá-las.

A criação de novas reservas é sempre importante porque elimina os conflitos a que estas pessoas estão sujeitas em diferentes partes da Amazônia. Mas não é suficiente. Sem projetos e recursos voltados para o desenvolvimento sustentável, como vem ocorrendo em toda a Amazônia, as pessoas voltam-se à exploração do que está mais próximo e mais viável, a pecuária e a agricultura. O preço dos produtos florestais, como borracha e castanha, ficou muito abaixo do rentável e os projetos de agregação de valor são pontuais e sem escala.

A política de bolsa família tem aplacado as demandas urgentes por benefícios sociais em várias comunidades. Mas todos são unânimes em afirmar que não querem viver de esmola do governo quando o que fazem – a proteção da Amazônia – tem um valor infinitamente maior e mais nobre.
RHBN - A presença estrangeira na Amazônia é motivo de preocupações?

Mary Alegretti - Em termos. É preciso qualificar essa questão. A idéia, muito difundida entre os brasileiros em geral, de que a Amazônia está sendo internacionalizada pelas organizações não governamentais, não é verdadeira.

A Amazônia está sendo destruída por ação de brasileiros que grilam terras, assassinam trabalhadores, invadem reservas indígenas, exploram ilegalmente a madeira e outros recursos. A Amazônia está sendo destruída por políticos brasileiros que decidem abrir uma estrada no coração da floresta para barganhar votos, independentemente dos impactos que, já sabemos, uma estrada traz para a floresta e, hoje, para o desequilíbrio climático do país e do planeta. A Amazônia está sendo destruída por governantes que só a vêem como fonte de recursos – energia, madeira, biodiversidade – sem dar a menor importância para o papel que a floresta poderia desempenhar no desenvolvimento do país, sem investir, em troca, em pesquisa, em sustentabilidade, em educação, em infra-estrutura social.

Não devemos apontar estrangeiros como culpados, quando nós mesmos destruímos nosso mais valioso patrimônio natural e cultural.

O que fazem os estrangeiros é mais sutil - carregar exemplares da nossa biodiversidade para depois patentar e lucrar com os resultados. Mas estou certa de que se fizéssemos investimentos para explorar o potencial da biodiversidade amazônica, teríamos maior capacidade de controlar a biopirataria internacional.

Outra vulnerabilidade a ser corrigida com urgência é o destino das terras públicas. O descaso do governo brasileiro com a regularização fundiária da Amazônia tem facilitado brasileiros e estrangeiros a se apossar de terras e de recursos que estão ali, disponíveis; a presença do Estado na Amazônia é tão frágil que essa invasão ocorre sem que dela se tenha conhecimento.

RHBN - Como os outros países da América do Sul cuidam da preservação da floresta em seus respectivos territórios? Há casos semelhantes à luta dos seringueiros brasileiros nestas outras nações?

Mary Alegretti - O bioma Amazônia possui quase 8 milhões de km2, distribuídos em nove países da América do Sul. A Amazônia latino-americana é equivalente ao território dos Estados Unidos ou de toda Europa Ocidental.

O Brasil desenvolveu políticas e práticas mais avançadas na fiscalização e na proteção da Amazônia do que os outros países que compartilham o bioma. Nossas organizações de meio ambiente são mais estruturadas do ponto de vista de equipamentos, equipes técnicas, recursos financeiros, cooperação internacional. Mas a ausência de políticas pan-amazônicas, coerentes e consistentes com a importância do bioma, tem conseqüências negativas para todos os países.

Os problemas maiores estão na fronteira ocidental, especialmente com Colômbia, Peru e Bolívia. No caso da Colômbia, a guerrilha expulsa comunidades tradicionais e indígenas para o lado brasileiro tornando-os refugiados e fragilizando a proteção das fronteiras internacionais. No caso do Peru, políticas de concessão florestal e mineral, em áreas de índios isolados ou com poucos anos de contato, ameaçam a integridade de povos ainda desconhecidos. A exploração descontrolada dos recursos gera alto impacto ambiental e social. Diversos grupos representantes de comunidades indígenas e de ONGs lutam para mudar essa situação. No caso da Bolívia, centenas de seringueiros expulsos na década de 1970, vivem em situação precária nas áreas próximas à fronteira, principalmente na atualidade, em decorrência dos conflitos políticos recentes ocorridos na região.

A luta dos seringueiros brasileiros e a história de Chico Mendes são fonte de inspiração para movimentos sociais em toda a bacia amazônica, mas não necessariamente as soluções encontradas no Brasil são adequadas aos outros países. Organizações indígenas, nestes países, têm longa história de resistência e de conquistas, comparáveis às que têm conquistado os mesmos grupos sociais no Brasil.