Por Lúcio Flávio Pinto *
21 de agosto de 2006
Adital - Adilson Freitas Dias reagiu ao meu artigo "Eu sou amazônida. E você?", publicado na edição anterior do Jornal Pessoal de Lúcio Flávio Pinto, com a seguinte mensagem:Você toca em uma questão que há muito me faço sem obter uma resposta que me convença. Perdoe-me pela ignorância da minha pergunta, mas qual seria uma via de desenvolvimento para a Amazônia, considerando a lógica capitalista hoje posta, sem por em risco nossa rica biodiversidade? Como seria a "cultura da floresta"? Ela daria conta de atender aos anseios dos amazônidas?
Sou economista e freqüentemente me faço essa provocação, sinto-me meio que obrigado a saber a resposta, sobretudo depois que conheci Santarém, onde passei vinte dias pesquisando o Arranjo Produtivo Local de grãos. Visitei vários segmentos do setor (produtores, sindicatos e ONGs e etc.), e por fim participei de um seminário na FIT (Faculdades Integradas do Tapajós) em que o tema principal era a soja. Além da visível divisão entre os que são favoráveis e contrários à cultura da soja, o que vi foi a crença de um povo que de fato acredita que a soja é o "ouro verde" capaz de promover o tão esperado desenvolvimento.
Isso ficou evidente durante o referido seminário, em que não faltaram discursos, até com um certo rancor contra os "urbanóides" (como denominava o Prof. Aluísio Leal aos moradores da capital), creditando aos sucessivos governos estaduais o descaso com a região do Baixo Amazonas. Neste dia só ficou faltando mesmo a execução do hino do Estado do Tapajós. Por outro lado, nas conversas com pessoas ligadas aos setores contrários à soja, percebi que as argumentações não conseguem avançar além das questões ligadas ao meio ambiente.
Devo salientar que não tenho opinião formada sobre o assunto, não por covardia, mas por ser incompetente mesmo para arriscar um palpite. Angustia-me não perceber entre os contrários a apresentação de uma alternativa viável e detalhada de desenvolvimento que poderia substituir esse novo ciclo econômico da região. Falo de uma proposta que possa levar a cada caboclo da região as benesses do sistema, que gostemos ou não, é o que vige. Não me refiro a idéias que visam manter, o ribeirinho, o pequeno agricultor, o caboclo, ou quem quer que seja, em culturas de subsistência, que subsistem inclusive a miséria.
Não sei se estou falando bobagens, mas na avaliação que faço, apontar os erros dos caminhos por nós escolhidos e/ou impostos à Amazônia, é relativamente fácil, pois os resultados já estão aí. O desafio é antevê-los e propor alternativas, e, a meu ver, são poucos os que têm essa capacidade. Como já lhe escrevi certa vez, sou um leitor e admirador de seus trabalhos e percebo em você essa capacidade e por isso, gostaria de compartilhar essa provocação. Sendo bem pontual: como seria a "cultura da floresta" para a região de Santarém? Como dizer àquele povo, que você conhece tão bem, não só por ser santareno, mas por ser um dos maiores conhecedores da Amazônia, que esse novo ciclo de crescimento econômico que vive a região não se traduzirá em desenvolvimento no longo prazo, sem lhes apresentar nada em troca?
Também por e-mail, enviei a seguinte resposta a Adilson:
A "cultura da floresta" é um projeto. Não se tornou realidade em nenhum lugar do mundo em nenhum momento. Somos homo agricolas. Mas a Finlândia vive de sua floresta. É um uso monovalente, mas intenso. Logo, a "cultura da floresta" é uma utopia. Mas o conhecimento atual já nos permite ter certeza de que destruí-la é uma estupidez. Onde existe a floresta tropical densa, o melhor investimento é mantê-la. O que não significa imobilizá-la.
Já escrevi defendendo um "modo científico" de ocupação. A partir de um esboço de zoneamento econômico-ecológico, em escala operacional e com informações confiáveis, o poder público executaria sobre esse desenho projetos de conhecimento. Turmas de graduação e pós-graduação em engenharia florestal, por exemplo, iriam ser mandadas para campi no mato, nas áreas de floresta nacional, para estudar e fazer. Acabariam com a melancólica dicotomia de que "quem sabe, faz; quem não sabe, ensina". Receberiam recursos (verba, base de apoio, equipamentos, supervisores, orientadores) para comandar projetos de manejo florestal, de uso inteligente de informações genéticas, etc., aplicando todo conhecimento disponível nessas empreitadas. Mas conectados aos centros de vanguarda em cada uma dessas especialidades no mundo, que também poderiam participar dos projetos em regime de convênio ou acordo de cooperação.
Os moradores locais seriam integrados a esses projetos, seja os dos graduandos e pós-graduandos, seja nos projetos que esses próprios moradores formularem. Outros seriam consultores remunerados. Outros ainda mão-de-obra qualificada em função de seu saber específico.
Utopia? Sim, mas exeqüível, desde que haja disposição para isso. Primeiro lugar em dinheiro, para valer. Em gente. Em equipamentos. E numa nova visão da Amazônia. A tarefa seria produzir informação operativa, de intervenção, de participação. Cada módulo do zoneamento receberia informação para se orientar e devolveria nova informação para reformular o conhecimento existente. Esse processo atrairia investimentos externos a esses projetos, mas ajustados a eles. O zoneamento não seria uma brincadeira digital ou uma enganação, mas uma ferramenta de ação.
Infelizmente não vou poder aprofundar agora, embora já tenha tratado bastante do tema no JP. Infelizmente, tenho que participar da preparação de uma peça para me defender amanhã em um dos muitos incidentes nos 15 processos judiciais a que respondo. Misérias de dizer a verdade na Amazônia. Ou pelo menos buscá-la. Mas, beirando os 60 anos, há quatro décadas andando pela Amazônia e tentando entendê-la, digo-lhe que essa onda de soja dentro da floresta é insensatez. Os santarenos, se refletirem, verão que já surfaram nessa onda e deram numa praia dura, quando acreditaram no ouro, na juta, no gado, no arroz, etc. Nosso futuro melhor depende de mantermos a árvore em pé, gregária, produtiva, em sinergia, estudando-a com o máximo de recursos e prioridades, e colocando esse saber para funcionar. Obrigado por seu interesse. Voltaremos a conversar.
Por feliz coincidência, na mesma época saiu, na revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), um artigo (A Floresta Amazônica e o futuro do Brasil), no qual Charles Clement, e Niro Higuchi, pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), de Manaus, tratam exatamente da questão provocada pelo leitor. A parte final desse artigo, que aqui reproduzo, com algumas simplificações para o leitor de jornal, é uma proposta concreta de aproveitamento racional da floresta amazônica em benefício de todos. Merece ser incorporada às reflexões dos verdadeiros amazônidas.
A visão que apresentamos neste artigo é de uma Amazônia desenvolvida com base na floresta, com indústrias madeireiras usando tecnologia de ponta para produzir produtos acabados para o mercado internacional e nacional e usando madeira oriunda de florestas manejadas, enriquecidas e certificadas. Quanta floresta será necessária? As estimativas de área e volume apresentadas na FRA 2005 incluem florestas primárias densas, manejadas, capoeiras e cerrados. Propomos uma área de floresta amazônica igual a 250 milhões de hectares, com uma média de 250 m3/ha (10% comercial), como razoável e conservador.
Com este pressuposto, o estoque atual de madeira comercial na Amazônia é de 6,25 bilhões de m3, que daria para atender os mercados de madeira tropical (internacional = 52 milhões m3/ano e nacional = 20 milhões m3) durante 87 anos, movimentando US$ 22 bilhões por ano. Isso é tempo suficiente para desenvolver um modelo econômico baseado na floresta - se usarmos o tempo apropriadamente - e o desenvolvimento pagará sua própria conta após uma década.
Para começar, num espaço de 10 anos, teremos que inverter a relação aproveitamento e desperdício, passando de 30% versus 70% para 70% versus 30% e, principalmente, colocar no mercado não apenas 10 m3/ha e sim 50 m3/ha de madeira em tora. Isso pode ser conseguido usando os estudos de tecnologia de madeira já realizados pelos laboratórios da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, em Santarém, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em Manaus, da Fundação Tecnológica do Acre, em Rio Branco, do Ibama, em Brasília, e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em São Paulo.
Depois de resgatar essas informações sobre espécies menos conhecidas no mercado, mas abundantes na floresta amazônica, o passo seguinte é introduzi-las no mercado, o que seria mais fácil no futuro porque o Brasil seria o principal fornecedor.
Essa visão oferece a possibilidade de gerar riqueza suficiente para pagar salários justos e gerar dividendos nas bolsas de valores, bem como garantir o ciclo hidrológico e, conseqüentemente, a chuva no Sudeste do Brasil. No entanto, essa visão somente pode ser alcançada se todos os ministérios do governo federal, todos os estados da Amazônia e todos os estados do Sudeste trabalharem juntos porque a floresta já está bastante fragmentada. A seguir, listamos algumas das mudanças nas políticas públicas que acreditamos necessárias em nível federal, as quais, logicamente, necessitam ter reflexo no âmbito estadual.
Moratória ao desmatamento. O MMA [Ministério do Meio Ambiente] expandirá a moratória com o apoio da Presidência da República, do Ministério de Justiça (Polícia Federal), do Ministério da Fazenda (Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal), e do Ministério de Defesa (Serviço de Proteção da Amazônia - Sipam). Somente a madeira certificada estará isenta da moratória, o que funcionará como estímulo para que as empresas do setor busquem a certificação. Esta ação é essencial para permitir que outras ações tenham o tempo necessário para serem viabilizadas.
Zoneamento econômico-ecológico da Amazônia Legal. Os Ministérios de Integração Regional, Agricultura, Pecuária e Abastecimento e MMA combinarão para convencer os Estados a expandir a área destinada a floresta em todas as áreas originalmente florestadas. De preferência, todas essas áreas deverão ser garantidas, pois o alvo é 250 milhões de hectares. Adicionalmente, ecossistemas especialmente críticos para a conservação da biodiversidade amazônica serão identificados para serem transformados em unidades de conservação.
O objetivo é criar um mosaico com pelo menos 35% em unidades de conservação (existem 32% em áreas protegidas hoje, algumas das quais são florestas nacionais), 50% em florestas manejadas privadas, e o resto em agricultura e pecuária intensiva. Esse mosaico deverá manter 80-85% da floresta, superando o mínimo de 70% necessário para manter o ciclo hidrológico.
Regularização fundiária. O Ministério da Justiça assumirá a supervisão minuciosa dos cartórios da Amazônia Legal para evitar grilagem de terras públicas e proteção aos direitos de propriedade na região, tanto para particulares, como para as florestas de produção, as unidades de conservação, as terras indígenas e as outras terras públicas. Titulação regular será essencial para garantir empréstimos bancários e de agências de fomento, e certificação. Todos os ministérios precisam apoiar as garantias de propriedade após a regularização, pois florestas precisam ser consideradas terras produtivas e não podem ser invadidas como aconteceu no Rio Grande de Sul em fevereiro de 2006.
Investimentos na indústria florestal. Os Ministérios de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Suframa), da Integração Regional (Sudam), da Fazenda (BNDES, BASA) direcionarão seus investimentos na Amazônia para a atividade florestal, eliminando investimentos no agronegócio (que poderá captar financiamento na rede bancária privada); deverão manter os investimentos na pesca e aqüicultura (fonte de proteína para a maioria da população amazônida).
Os investimentos se concentrarão na atualização tecnológica de empresas existentes, na viabilização de novos empreendimentos com tecnologias avançadas (especialmente a abertura de filiais de empresas do setor florestal com tecnologias modernas e fábricas atualmente localizadas fora da Amazônia), na criação de arranjos produtivos locais (como o pólo moveleiro que a Suframa está criando no Amazonas), e no adensamento da cadeia produtiva florestal em geral.
Tecnologias de ponta. A incorporação de tecnologias de ponta na indústria florestal é essencial para o sucesso dessa visão, pois os europeus, japoneses e norte-americanos pagarão bem para produtos bem feitos com madeira nobre, e até os chineses pagarão bem para produtos bem feitos com madeira nobre ou comum. Um exemplo a ser seguido é da empresa Ikea, a maior varejista do setor florestal nos países desenvolvidos. A Ikea comercializa móveis e outros produtos feitos de madeira certificada, com cada móvel numa caixa pequena preparado para ser montado em casa.
Produzir móveis montáveis como esses requer alta tecnologia e qualificação da mão-de-obra - e logicamente a mão-de-obra precisa ser bem paga. Tecnologias de ponta também reduzirão o desperdício de madeira, aumentando a eficiência das fábricas, reduzindo a geração de dejetos, e melhorando a razão custo/benefício da operação. Tecnologias de ponta incluem equipamentos, técnicas e desenho industrial e comercial. A Fundação Centro de Análises, Pesquisa e Inovação Tecnológica (Fucapi, Suframa) em Manaus oferece orientação e capacitação na identificação e desenvolvimento dessas tecnologias.
Investimentos em produção florestal. Seguir rigorosamente o que consta na legislação florestal é o primeiro passo em direção a sustentabilidade do manejo florestal. Os sistemas clássicos de silvicultura tropical (malaio uniforme - desenvolvido em Malásia na época colonial -, bosque abrigado e seletivo), utilizados em manejo de florestas tropicais do mundo todo, não produziram os resultados esperados. Na Amazônia, o sistema mais usado é o seletivo.
Propomos um modelo misto, utilizando o sistema seletivo com faixas de enriquecimento com espécies valiosas e conhecidas do ponto de vista silvicultural, como cedrorana e castanha do Brasil. Dessa forma, será possível aumentar o volume comercial por unidade de área no primeiro ciclo de corte. Do ponto de vista florestal e econômico, os ciclos subseqüentes serão mais seguros por conta da disponibilidade de mais espécies comerciais introduzidas no primeiro ciclo.
Certificação. Existem diversos tipos de certificação que poderiam ser úteis nessa perspectiva, especialmente a certificação de produção sustentável e a de qualidade (ISO). Para que essa visão gere benefícios na Amazônia, componentes sociais e laborais precisam ser incluídos como partes fundamentais dos processos de certificação, para que o Brasil e a Amazônia possam desenvolver-se no sentido mais completo da palavra. Uma outra vantagem da certificação é que ela exige fiscalização contínua e independente, o que, teoricamente, reduz as oportunidades para o tipo de corrupção que tem encharcado os projetos de manejo florestal na Amazônia.
Pesquisa e desenvolvimento. Muitas das tecnologias e práticas necessárias para implementar essa visão já existem, mas outras precisarão ser geradas nas instituições de ensino e pesquisa na Amazônia e no Brasil. Os ministérios de Ciência e Tecnologia, da Agricultura e da Educação possuem mecanismos para incentivar P&D na Amazônia. As Embrapas da Amazônia, o Inpa e as universidades federais e estaduais incrementarão suas pesquisas florestais para recuperar áreas degradadas por meio de projetos de silvicultura, bem como incrementarão suas pesquisas em enriquecimento de florestas em pé. Novas tecnologias de processamento e novos desenhos de produtos e processos serão de fundamental importância para garantir qualidade e atrair compradores nos países desenvolvidos.
Educação. A educação sobre a Amazônia é deficiente no país e na própria região, particularmente em assuntos que ensinam a história, as tradições, os estilos de vida, os alimentos dos amazônidas, quase ao ponto de fazer crer que esses brasileiros não existem. A educação ambiental é igualmente pobre. Se a Amazônia espera se desenvolver com base na floresta, como na visão que aqui se apresenta, o MEC e as secretarias estaduais de Educação precisam revisar as grades curriculares de primeiro grau à universidade para refletir a nova base da economia regional - atualmente a agricultura convencional é considerada a base da economia brasileira e permeia as grades curriculares.
A visão apresentada é factível e contribuirá para o desenvolvimento da Amazônia com a floresta em pé, embora gradualmente a floresta deva ser transformada em termos de sua densidade econômica, mas mantendo a maior parte de sua biodiversidade. É a única proposta que tem as escalas geográfica e econômica necessárias para enfrentar o agronegócio, hoje em franca expansão. Deixará espaço abundante para as outras idéias sobre o uso da biodiversidade e das florestas, como a bioprospecção, os projetos de manejo comunitário e a estocagem de carbono para atender os compromissos brasileiros frente ao Protocolo de Kyoto.
A visão contribuirá para garantir o ciclo hidrológico que abastece a região agrícola do Sudeste do Brasil, bem como os principais centros urbanos do país. A principal questão é a vontade política em fazer as mudanças necessárias de forma completa e rápida. Sabemos que essa vontade não virá de um só ministério - terá de vir da próxima geração de Getúlios e Juscelinos, apoiada em todos as agências dos governos federal e estaduais.
* Jornalista