terça-feira, dezembro 16, 2008

Chico Mendes: vivo látex

Esta é um entrevista que concedi a Adriano Belisário, da Revista de História da Biblioteca Nacional http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2113

Chico Mendes: vivo látex

Quando cortado, o caule da seringueira produz o látex. Para a árvore, ele serve para cicatrizar o ferimento causado pela secção. Para o homem, a possibilidade de produzir borracha a partir da substância a tornou sinônimo de riqueza.

Nascido no Acre, Francisco Alves Mendes Filho trabalhou nos seringais por anos. Pôde observar de perto os conflitos entre trabalhadores e patrões. Também estava atento ao crescente desmatamento que, para abrir espaço aos pastos, substituía o silencioso cair das gotas da borracha pelo barulho das moto-serras.

Pois, quando ferida, a Amazônia produziu Chico Mendes. Como o látex, ele valorizou e preservou a floresta. Chico enriqueceu simbolicamente a causa ambientalista, dando destaque internacional às lutas dos seringueiros. Sua proposta de unir conservação da natureza e atividade humana representava uma ruptura nos paradigmas da época.

Sua morte em dezembro de 1988 o tornou um mártir. No entanto, ele não foi o único responsável pela grande projeção das lutas dos seringueiros. A antropóloga Mary Allegretti colaborou com ele na década de 80 e ganhou diversos prêmios internacionais em reconhecimento a seu trabalho de preservação do meio ambiente. Nesta entrevista à Revista de História, Mary conta detalhes de sua convivência com Chico, seu legado para a Amazônia e avalia os avanços na preservação da região.

RHBN - Quando você foi à Amazônia a primeira vez?

Mary Alegretti - Fui ao Acre em 1978 para fazer a pesquisa da minha tese de mestrado. Estudava as mudanças nas relações de trabalho geradas pelas empresas agropecuárias que estavam se implantando na região. Havia também previsto uma rápida pesquisa em um seringal para compreender melhor as causas das mudanças e dos conflitos que estavam sendo denunciados nos jornais.

Impressionou-me o fato de ter encontrado um seringal produzindo borracha de forma muito semelhante ao que está descrito na literatura sobre o tema. Havia o sistema de aviamento, que trocava toda a borracha produzida pelos seringueiros por mercadorias compradas no barracão; as contas-correntes de cada seringueiro, sempre manipuladas para que eles ficassem devendo permanentemente; o pagamento de renda pelas estradas de seringa e a obrigatoriedade de entregar toda a borracha ao patrão, o seringalista; havia o comportamento submisso e ao mesmo tempo rebelde dos seringueiros.

Enfim, era difícil entender como esse sistema continuava se mantendo enquanto a borracha da Amazônia há muito tempo havia sido substituída pela produzida no sudeste da Ásia.

Levei algum tempo para entender que o governo brasileiro subsidiava o preço da borracha aos seringalistas e mantinha, dessa forma, esse sistema de semi-escravidão. Os seringueiros, analfabetos e sem acesso a qualquer tipo denúncia, permaneciam invisíveis e ocultos dentro das florestas acreanas. Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) estavam sendo formados naquele momento, mas havia ainda muita desconfiança.

Essa realidade dos seringais me chocou porque não achava que ainda existisse esse sistema de trabalho no Brasil. E o analfabetismo, que contribuía para tornar o seringueiro submisso, me indignou de tal forma que saí dessa pesquisa com a firme decisão de que iria fazer uma escola na mata para mudar essa situação.

RHBN - E como conheceu Chico Mendes?

Mary Alegretti - Conheci Chico em 1981 no Acre, na redação do Jornal Varadouro. Fui fazer uma entrevista com ele por sugestão do editor do jornal. Chico era filho e neto de seringueiros e havia passado sua infância e juventude ao lado do pai cortando seringa, próximo à fronteira com a Bolívia. Com 11 anos, a família se transferiu para o seringal Cachoeira, no município de Xapuri, no Acre, onde seus parentes vivem até hoje.

Diferentemente dos outros seringueiros, porém, Chico aprendeu a ler quando tinha 16 anos, com um refugiado político, Euclides Fernandes Távora, que morava em uma colocação próxima à da sua família. Esse fato teve uma grande influência na sua vida. Quando começaram a ser formados os sindicatos no Acre, ele logo participou e foi secretário da primeira diretoria do STR de Brasiléia, criado em 1975 e presidido por Wilson Pinheiro.


A situação do Acre era crítica naquele momento, em termos de conflitos fundiários. A mudança de política para a Amazônia, durante o regime militar, levou uma profunda crise aos seringais. O governo acabou com a política do monopólio da borracha, que protegia os preços. Os seringalistas, endividados, venderam os seringais para empresas agropecuárias do sul do país. Mas os seringais foram vendidos com os seringueiros dentro e os conflitos foram tão violentos que a Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) foi para o Acre defender os posseiros e criar os sindicatos.

Em 1977, Chico Mendes ajudou a criar o STR de Xapuri e foi convidado a se candidatar a vereador pelo MDB. Quando eu o conheci ele estava no segundo ano do mandato de vereador e continuava fortemente ligado ao sindicato.

Ele me impressionou muito porque me mostrou uma realidade totalmente diferente daquela que eu havia pesquisado. Enquanto os seringueiros do vale do Juruá continuavam "cativos" aos patrões, como eles diziam, os do vale do Acre eram "libertos", vendiam a borracha por conta própria e não pagavam mais renda. O problema que eles enfrentavam era outro: perda dos meios de vida com a destruição das seringueiras e castanheiras para implantação das pastagens.

Desde 1976 os seringueiros estavam lutando contra os desmatamentos por meio de um movimento inventado por eles e liderado por Wilson Pinheiro, os "empates". Eles se reuniam com suas famílias, iam para as áreas ameaçadas de desmatamento, desmontavam os acampamentos dos peões e paravam as moto-serras.

Em função destes conflitos, em 1980, Wilson Pinheiro foi assassinado dentro da sede do Sindicato, em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia. Uma grande manifestação que ocorreu logo depois, inclusive com participação do então líder metalúrgico Lula da Silva, levou todos ao enquadramento na Lei de Segurança Nacional por incitamento à violência. Quando eu conheci Chico ele estava chegando da audiência ocorrida no tribunal militar de Manaus. Anos depois eles foram inocentados por falta de provas, mas os prejuízos às suas vidas já haviam sido feitos.

RHBN - Quais eram as lembranças de Chico sobre Euclides Távora?

Mary Alegretti - Chico dizia que havia tirado a sorte grande por ter tido a oportunidade de aprender não só a ler e escrever, mas a pensar, com a convivência com Euclides Távora. Ele disse que não sabia a origem de Euclides e que somente quando ele ficou doente, um pouco antes de ir embora procurar tratamento, revelou quem era. Na minha dissertação de doutorado organizei a sua fala sobre esse fato, compilando de várias entrevistas dadas por ele:

Até hoje ninguém conseguiu comprovar a existência de Euclides Távora e dos fatos relatados por Chico. É um bom tema para um estudante de pós-graduação em história.

RHBN - Como foram os trabalhos desenvolvidos com Chico?

Mary Alegretti - Chico Mendes lutou pelos seringueiros e pela floresta de 1965 a 1988, mas somente obteve reconhecimento um pouco antes de ser assassinado. Quando o conheci, ele era discriminado em quase todos os lugares onde andava. Achavam que ele exagerava nas denúncias de desmatamento, que era muito independente politicamente, e eram raros os que acreditavam no que ele falava. Vivia quase sem recursos. Quando não estava andando pelos seringais, estava à frente da velha máquina de datilografia do STR de Xapuri.

Em 1983, assim que acabou seu mandato de vereador, já no Partido dos Trabalhadores, que ajudou a fundar no Acre, Chico foi eleito presidente do STR de Xapuri. Em 1982, começamos a organizar o Projeto Seringueiro para fortalecer o movimento contra os desmatamentos em Xapuri. Larguei a Universidade Federal do Paraná, onde era professora assistente de Antropologia, para trabalhar com uma pequena equipe no Projeto Seringueiro.

Em 1985, novamente juntos, organizamos o primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros em Brasília. Mais de 100 seringueiros criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros, como entidade representativa, e elaboraram uma proposta original de reforma agrária: as reservas extrativistas. Decidiram que não queriam o modelo convencional de lotes individuais, mas sim uma reforma baseada na exploração da floresta e dos seus recursos. À semelhança das reservas indígenas, seriam reservas destinadas aos extrativistas, com propriedade da União e usufruto dos seringueiros por meio de concessão de uso.

Depois do Encontro Nacional, Chico começou a ser mais ouvido. Era convidado a dar palestras e a falar sobre a luta dos seringueiros, totalmente desconhecida no país. Mas a sua projeção internacional foi resultado da ação de Adrian Cowell, cinegrafista inglês que filmou o Encontro Nacional e decidiu acompanhar o dia a dia do trabalho do Chico a partir dali. Em 1987 ele lançou internacionalmente um documentário – "Eu Quero Viver" – onde mostrou a luta do Chico para proteger a floresta.

A repercussão foi muito grande e ele foi indicado ao prêmio de meio ambiente da ONU. Essa idéia, de proteger a floresta usando os seus recursos, era muito nova porque a prática até então era de proteger as florestas sem a presença humana. O exemplo dos seringueiros modificava todos os paradigmas de conservação existentes até então.Mas ao mesmo tempo em que Chico conquistava o respeito internacional, era mais ameaçado em Xapuri. Os empates terminavam em prisão. As promessas de regularização dos conflitos fundiários não se concretizavam. A idéia de criação de reservas extrativistas se arrastava na burocracia federal.

Nesse contexto, um fazendeiro, Darly Alves, decidiu grilar e desmatar uma área dentro do seringal Cachoeira, a área onde Chico e sua família sempre viveram. Era um confronto direto com o sindicato e com Chico. Os seringueiros empataram o desmatamento e o confronto levou à criação do PAE Cachoeira.

Chico descobriu que Darly Alves, que com seus filhos viviam ameaçando de morte as lideranças em Xapuri, havia sido julgado por crimes cometidos no Paraná e era foragido da justiça. Conseguiu um mandado de prisão e entregou à Polícia Federal em Rio Branco. Nada foi feito e a perseguição adquiriu um caráter cada vez mais de vingança pessoal de Darly contra Chico. Em 22 de dezembro de 1988, dois filhos de Darly fizeram uma tocaia nos fundos da casa de Chico e o assassinaram.

A repercussão foi imediata e ocorreu no mundo inteiro. A indignação foi forte e se refletiu em seguida no Brasil. A imprensa brasileira, que até então ignorara a luta dos seringueiros e nunca abrira espaço para Chico Mendes, procurou recuperar o tempo perdido. A forte reação e pressão da opinião pública levaram à condenação dos criminosos em 1990, fato inédito na justiça rural no Brasil.

RHBN - Onde você estava no dia da morte dele? Como recebeu a notícia?

Mary Alegretti - Em novembro de 1988, fui a uma conferência sobre florestas tropicais organizada no Japão para apresentar a proposta de reservas extrativistas em um contexto internacional de formulação de políticas florestais. Após o evento, fui à Malásia conhecer os famosos seringais de cultivo que haviam sido implantados com as sementes de seringueira roubadas da Amazônia e conhecer o modelo de exploração usado por pequenos agricultores.

Ao voltar, em Nova York, na madrugada do dia 23, recebi a notícia do assassinato do meu amigo e parceiro de tantas lutas. Saí na mesma hora, debaixo de neve, de lá para Miami, peguei o avião para Manaus e, no dia 24, às 8 horas da manhã eu estava em Rio Branco. Ao meio dia em Xapuri, velando o corpo do Chico e dividindo minha imensa tristeza com muitos seringueiros que foram para a cidade, em convocação feita pelo Chico, para uma grande assembléia do Sindicato, que seria realizada logo depois do Natal.

O assassinato do Chico para todos nós representou o fim de uma luta grandiosa que não havia levado a quase nenhuma conquista. Os seringueiros haviam alcançado muito pouco com tanto esforço e sacrifício pessoal – entre 1987 e 1988 foram assassinadas outras quatro lideranças sindicais em Brasiléia e Xapuri. Era como se tivéssemos perdido as esperanças. E embora todos tenham jurado dar continuidade à luta pela qual Chico morrera, as perspectivas eram muito limitadas. Não tivesse acontecido a repercussão internacional e nacional ao assassinato dele, provavelmente não teríamos alcançado nada.

RHBN - E o legado deixado por Chico Mendes? Houve avanços concretos na preservação da floresta?

Mary Alegretti - O legado deixado por Chico Mendes é imenso. Existem hoje duas categorias de unidade de conservação inspiradas em suas idéias: reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, ambas parte do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Esse é um legado importante que beneficia mais de 500 mil pessoas. A criação de uma unidade de conservação de uso sustentável elimina conflitos, assegura direitos e cria uma expectativa de vida para as famílias que ali vivem.

Outro legado importante é exatamente esse conceito de unidade de conservação de uso sustentável que, ao mesmo tempo em que regulariza a questão fundiária, possibilita a conciliação entre proteção do meio ambiente e desenvolvimento sustentável e eliminação da pobreza. Antes do movimento dos seringueiros toda teoria de conservação evitava a presença humana e a pobreza era considerada uma das maiores causas de degradação ambiental. Hoje, esse conceito é reconhecido no mundo todo como exemplar para comunidades que vivem em países com florestas tropicais.

O legado de Chico Mendes não é só de conquistas. É também de impasses. A reserva extrativista é uma espécie de contrato entre os moradores e gestores da área e o Estado. Cabe aos primeiros proteger os territórios e usar os recursos de forma sustentável; cabe ao segundo, viabilizar recursos e políticas de educação, saúde, desenvolvimento econômico; cabe também ao governo fiscalizar, evitar invasões e assegurar a parceria na gestão destes territórios. O poder público se concentrou mais em criar novas unidades do que em implementá-las.

A criação de novas reservas é sempre importante porque elimina os conflitos a que estas pessoas estão sujeitas em diferentes partes da Amazônia. Mas não é suficiente. Sem projetos e recursos voltados para o desenvolvimento sustentável, como vem ocorrendo em toda a Amazônia, as pessoas voltam-se à exploração do que está mais próximo e mais viável, a pecuária e a agricultura. O preço dos produtos florestais, como borracha e castanha, ficou muito abaixo do rentável e os projetos de agregação de valor são pontuais e sem escala.

A política de bolsa família tem aplacado as demandas urgentes por benefícios sociais em várias comunidades. Mas todos são unânimes em afirmar que não querem viver de esmola do governo quando o que fazem – a proteção da Amazônia – tem um valor infinitamente maior e mais nobre.
RHBN - A presença estrangeira na Amazônia é motivo de preocupações?

Mary Alegretti - Em termos. É preciso qualificar essa questão. A idéia, muito difundida entre os brasileiros em geral, de que a Amazônia está sendo internacionalizada pelas organizações não governamentais, não é verdadeira.

A Amazônia está sendo destruída por ação de brasileiros que grilam terras, assassinam trabalhadores, invadem reservas indígenas, exploram ilegalmente a madeira e outros recursos. A Amazônia está sendo destruída por políticos brasileiros que decidem abrir uma estrada no coração da floresta para barganhar votos, independentemente dos impactos que, já sabemos, uma estrada traz para a floresta e, hoje, para o desequilíbrio climático do país e do planeta. A Amazônia está sendo destruída por governantes que só a vêem como fonte de recursos – energia, madeira, biodiversidade – sem dar a menor importância para o papel que a floresta poderia desempenhar no desenvolvimento do país, sem investir, em troca, em pesquisa, em sustentabilidade, em educação, em infra-estrutura social.

Não devemos apontar estrangeiros como culpados, quando nós mesmos destruímos nosso mais valioso patrimônio natural e cultural.

O que fazem os estrangeiros é mais sutil - carregar exemplares da nossa biodiversidade para depois patentar e lucrar com os resultados. Mas estou certa de que se fizéssemos investimentos para explorar o potencial da biodiversidade amazônica, teríamos maior capacidade de controlar a biopirataria internacional.

Outra vulnerabilidade a ser corrigida com urgência é o destino das terras públicas. O descaso do governo brasileiro com a regularização fundiária da Amazônia tem facilitado brasileiros e estrangeiros a se apossar de terras e de recursos que estão ali, disponíveis; a presença do Estado na Amazônia é tão frágil que essa invasão ocorre sem que dela se tenha conhecimento.

RHBN - Como os outros países da América do Sul cuidam da preservação da floresta em seus respectivos territórios? Há casos semelhantes à luta dos seringueiros brasileiros nestas outras nações?

Mary Alegretti - O bioma Amazônia possui quase 8 milhões de km2, distribuídos em nove países da América do Sul. A Amazônia latino-americana é equivalente ao território dos Estados Unidos ou de toda Europa Ocidental.

O Brasil desenvolveu políticas e práticas mais avançadas na fiscalização e na proteção da Amazônia do que os outros países que compartilham o bioma. Nossas organizações de meio ambiente são mais estruturadas do ponto de vista de equipamentos, equipes técnicas, recursos financeiros, cooperação internacional. Mas a ausência de políticas pan-amazônicas, coerentes e consistentes com a importância do bioma, tem conseqüências negativas para todos os países.

Os problemas maiores estão na fronteira ocidental, especialmente com Colômbia, Peru e Bolívia. No caso da Colômbia, a guerrilha expulsa comunidades tradicionais e indígenas para o lado brasileiro tornando-os refugiados e fragilizando a proteção das fronteiras internacionais. No caso do Peru, políticas de concessão florestal e mineral, em áreas de índios isolados ou com poucos anos de contato, ameaçam a integridade de povos ainda desconhecidos. A exploração descontrolada dos recursos gera alto impacto ambiental e social. Diversos grupos representantes de comunidades indígenas e de ONGs lutam para mudar essa situação. No caso da Bolívia, centenas de seringueiros expulsos na década de 1970, vivem em situação precária nas áreas próximas à fronteira, principalmente na atualidade, em decorrência dos conflitos políticos recentes ocorridos na região.

A luta dos seringueiros brasileiros e a história de Chico Mendes são fonte de inspiração para movimentos sociais em toda a bacia amazônica, mas não necessariamente as soluções encontradas no Brasil são adequadas aos outros países. Organizações indígenas, nestes países, têm longa história de resistência e de conquistas, comparáveis às que têm conquistado os mesmos grupos sociais no Brasil.

Chico Mendes - O Preço da Floresta

rodrigo2.jpgRodrigo Astiz foi o diretor do documentário "Chico Mendes – O Preço da Floresta" que a Discovery Channel mostrou esta semana. Foi o primeiro documentário sobre Chico Mendes dirigido por um brasileiro e realizado no local onde os fatos aconteceram. Com muita pesquisa, entrevistas e boas imagens, o documentário atualiza uma história de vinte anos atrás para a realidade de hoje de Xapuri e do Acre. Merece ser projetado mais vezes, principalmente na Reserva Chico Mendes, em Xapuri, e em Rio Branco, para que as pessoas que ajudaram a contar a história também vejam o alcance, no presente, do que ajudaram a construir. O artigo a seguir foi escrito por Rodrigo especialmente para o blog.

Chico Mendes – O Preço da Floresta
Rodrigo Astiz


No final de 1988, quando Chico Mendes foi assassinado, eu tinha vinte anos e confesso que sabia pouco sobre ele e a luta dos seringueiros do Acre. Da época lembro principalmente das manchetes noticiando o assassinato e, depois, da prisão, julgamento e condenação dos assassinos.

Por isso, quando o Discovery Channel Latin America propôs a produção de um documentário sobre a vida e o legado de Chico Mendes, achei que era uma oportunidade de conhecer a fundo sua história e, melhor, contá-la a toda uma nova geração de jovens na América Latina.

A grande pergunta que me fazia era: quem afinal foi Chico Mendes? Ambientalista? Líder sindical? Seringueiro? E o que descobri é que ele foi tudo isso e muito mais. Foi irmão, primo, marido, pai, amigo, companheiro e tantas outras coisas para aqueles que tiveram a chance de conhecê-lo e conviver com ele.

Logo nos primeiros momentos da pesquisa para desenvolver o projeto, surgiram ligados a Chico Mendes nomes como o de Mary Allegretti, Marina Silva, Jorge Viana e Binho Marques, pessoas que nesses 20 anos se destacaram no cenário político nacional, sempre em defesa da floresta, dos povos que vivem nela e, principalmente, de um novo modelo de desenvolvimento para a região amazônica. Depois, em Xapuri e nos seringais ao redor, conheci os primeiros companheiros de Chico: o irmão, Zuza, os primos, Raimundão, Nilson e Duda, a tia Cecília, os companheiros Osmarino, Moisés, Gomercindo e tantos outros. E ainda ouvi a história daqueles que morreram no processo como Wilson Pinheiro e Ivair Higino.

Tendo Chico Mendes como amálgama, esses dois grupos de pessoas fizeram um levante para barrar o avanço do processo de desmatamento que corria solto na época transformando enormes áreas de mata em fazendas para a criação de gado. No processo ainda criaram o conceito de Reservas Extrativistas, uma proposta objetiva de desenvolvimento sustentável. Isso em pleno regime militar e, tanto quanto foi possível, de forma pacífica. E numa época em que o alcance do discurso ambiental, hoje dominante, ainda era restrito. A meu ver, isso é algo incrível na História brasileira recente e que merece ser contado de forma mais detalhada por que é um exemplo do que a sociedade organizada pode realizar.

Tive a sorte e o privilégio de logo nos primeiros dias de gravação ter a Mary ao meu lado “traduzindo” esse universo até então novo para mim. E de ver a emoção dela reencontrando velhos amigos e visitando localidades que há muito não via, como a escola do Projeto Seringueiro, no seringal Rio Branco. Para todos foi impressionante ver a escola cheia de crianças e adolescentes – todos filhos de seringueiros – e ouvir seus sonhos e planos para o futuro.

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Rodrigo Astiz com o professor da escola da colocação Rio Branco e com Raimundo de Barros, primo de Chico Mendes, na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri, Acre, agosto de 2008

Junto com Mary tive também uma pequena amostra de como era o clima de tensão na região na época. No período de gravação, entre maio e junho de 2008, aconteceu em Xapuri o julgamento dos acusados de assassinar Ivair Higino, morto em junho de 1988, seis meses antes de Chico Mendes. Os acusados eram todos da família de Darcy Alves, condenado como mandante do assassinato de Chico. No dia do julgamento, quando almoçávamos no restaurante da dona Vicenza, um grupo ligado aos acusados entrou para almoçar e ao ver que Mary estava lá começou a agredi-la verbalmente de forma indireta. Foi algo chocante tanto pela violência das palavras quanto pela covardia do sujeito e um exemplo do tipo de gente que Chico Mendes e seus companheiros enfrentaram há vinte anos e das táticas que eles utilizavam.

As experiências extrativistas do Acre, especificamente da região de Xapuri, me impressionaram muito. Sempre ouvi falar de como o desenvolvimento sustentável é importante, do valor da “floresta em pé”, mas ver tudo isso na prática é totalmente diferente. A impressão que tive é que sim, é possível ganhar mais dinheiro com a floresta e seus produtos do que derrubando-a. São casos como o da COOPERACRE tendo a frente Manuel Monteiro, um filho de seringueiro que passou pelas escolas do Projeto Seringueiro e chegou à universidade e que consegue juntar o conhecimento dos dois mundos para agregar valor aos produtos da floresta e vendê-los em mercados de todo o Brasil. Ou então, da recém inaugurada fábrica de preservativos que aumentou o valor pago pelo látex aos seringueiros e ainda gerou empregos em Xapuri. Ou ainda a fábrica em Rio Branco que transforma os troncos extraídos de projetos de manejo florestal em laminados de madeira que são exportados para a Europa, entre outros lugares.

Sei que o que vi é apenas uma parte muito pequena da realidade, mas tudo isso me faz pensar que o Acre é como um grande laboratório de experiências de sustentabilidade onde várias iniciativas são testadas. O que acontece lá e em outros lugares pode ser usado um dia como parte de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, não apenas nas regiões de floresta, mas também reservas extrativistas marinhas e outras que vierem a surgir. O mais importante, na minha opinião, é agregar valor aos produtos extrativistas e construir a ponte entre produtor e mercado consumidor.

O momento histórico não poderia ser mais apropriado e talvez os 20 anos da morte de Chico Mendes seja a oportunidade ideal para fazermos essa reflexão.

Como todos sabem a produção de um documentário é um trabalho de criação coletivo. Aqui vai o nome de todos que com seu conhecimento, trabalho e dedicação realizaram Chico Mendes – O Preço da Floresta:

Direção: Rodrigo Astiz
Produção Executiva: Krishna Mahon
Roteiro: Eduardo Acquarone e Paula Knudsen
Assistência de Direção: Marcello Bozzini
Coordenação de Produção: Adriana Marques e Isabel Oliva
Produção: Adriana Oda e Carolina Sciotti
Pesquisa: Cristina Uchoa, Paula Knudsen e Stella Grisotti
Direção de Fotografia: Zé Mário Fontoura
Som Direto: Miquéias Motta
Coordenação de Finalização: Marilia Portella e Viviane Rocha
Montagem: Paulo Taman
Trilha Sonora: Plug In / Diogo Poças
Finalização de Som e Mixagem: Voxmundi Audiovisual
Locução: Nelson Gomes
Computação Gráfica: Oca Filmes
Produtores: Fabio Ribeiro, Gil Ribeiro, João Daniel Tikhomiroff e Michel Tikhomiroff

Para Discovery Channel Latin America

Direção de Produção e Desenvolvimento: Michela Giorelli
Produção: Carla Ponte e Irune Ariztoy
Gerência de Produção: Marcela Sánchez Aizcorbe

Uma Produção Mixer para Discovery Networks Latin America / US Hispanic