domingo, julho 30, 2006
DE GALVEZ A CHICO MENDES
Amazônia: de Galvez a Chico Mendes, a mini-série de autoria de Glória Perez e dirigida por Marcos Schechtman irá ao ar pela Globo a partir de 2 de janeiro.
Na foto, Elenira e Sandino, filhos de Chico Mendes, estão ao lado do ator Cássio Gabus Mendes que vai representá-lo na mini-série.
Glória e Marcos reuniram todo o elenco e convidaram especialistas na história e na alma acreana - seringueiro, soldado da borracha, historiador, Marina Silva e Jorge Viana. Foram dois dias de um exercício muito interessante de relato e reflexão sobre uma realidade pouco conhecida dos brasileiros.
Já tive oportunidade de falar sobre a história do Chico em muitos lugares do mundo. Mas foi a primeira vez que falei para um grupo que poderá influenciar a visão do país a respeito destes fatos. Por incrível que pareça, o Acre, Galvez, Plácido de Castro, Chico Mendes, são personagens quase ignorados da história do Brasil. O comentário geral era esse: muito preconceito sempre acompanhou o Acre, o lugar mais distante e ignorado do país, e que é, de fato, uma explosão permanente de inventividade e criatividade como o público vai conhecer a partir de janeiro.
Será muito interessante acompanhar essa minissérie que, como todas, têm sempre uma produção impecável e uma história bem elaborada. No caso de "Amazônia" estou certa que vai superar qualquer expectativa pelo nível do elenco - e pelo interesse que demonstraram no tema.
A história do Chico, por Glória Perez
Iniciei a tese que escrevi sobre a história do Chico a partir do vínculo que vi ele estabelecer entre Galvez, a conquista do Acre à Bolívia, e o direito dos seringueiros permanecer nos seringais e os empates como a expressão mais forte dessa idéia.
Na entrevista que fiz com ele em 1981 ele me explicou essa história:
"Foram os nordestinos, os seringueiros, que se transformaram em soldados, de uma hora para a outra, prá defender, quer dizer, tomar, conquistar essa terra que pertencia aos bolivianos. Eles julgam, por isso, eles se julgam donos da terra, porque foram seus antepassados que lutaram por ela".
Glória tem essa determinação que vejo em muitos acreanos de passar para os outros uma estória esquecida e que precisa ser reafirmada, todo tempo, todo dia. Acho que essa minissérie tem uma missão especial: colocar definitivamente no imaginário do país e na percepção das pessoas uma parte da Amazônia e do Brasil que fascina todos que a conhecem e onde pode estar uma chave para o futuro do país, em vários sentidos.
Desempenhei esse papel ao lado de Chico - a luta cotidiana para fazê-lo ser ouvido pelos meios de comunicação, tanto para defender sua vida como para conquistar espaço para suas idéias e suas propostas. Um trabalho tão árduo que somente seu assassinato foi capaz de produzir resultados. Finalmente, temos uma chance concreta de encerrar o capítulo do esquecimento e da ignorância a respeito dessa estória.
segunda-feira, julho 17, 2006
O ACRE DE RAIMUNDÃO E BINHO
Xapuri, 15.07.2006
Fui ao lançamento da candidatura de Raimundão a Deputado Estadual pelo PT. Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico Mendes, foi um dos seus mais fiéis e fortes parceiros.
Raimundo relatou que as pessoas que o encontram dizem que querem resgatar uma dívida com o Chico que tentou tantas vezes se eleger e não conseguiu. Nunca recebeu apoio maior do que o de seus parceiros de sempre. A cidade de Xapuri sempre lhe foi avessa.
Raimundão foi vereador quatro vezes e deve ter quebrado, em parte, a indiferença da cidade. Acho que tem chances de se eleger. Raimundão é, também, vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Acre, o que lhe dá um importante espaço de circulação e de apoio. Também existe um consenso no sentido de que muitos se elegeram falando em defender os trabalhadores mas nenhuma liderança tradicional como a dele conseguiu esse espaço até hoje.
Juarez Leitão, jovem seringueiro de Feijó, ex-presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros foi eleito na última legislatura e é candidato à reeleição. Conseguiu votos em todo o estado exatamente porque representa um segmento com força política mas sem representação parlamentar direta.
Raimundão é um candidato histórico, tem uma luta reconhecida e, como pude perceber em Xapuri, está preparado e merece essa eleição. Quando fui Secretária da Amazônia criei o Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente e idealizei uma modalidade pensando nele: liderança individual. Ele foi premiado e com o prêmio construiu sua casa em Xapuri. Agora merece o prêmio do voto e, como afirmou muitas vezes, não irá decepcionar.
Apoio de Binho
Candidato à sucessão de Jorge Viana, Binho Marques foi ao lançamento da candidatura de Raimundão. Binho foi coordenador do Projeto Seringueiro e ajudou a construir as escolas do projeto, uma delas na colocação Rio Branco, onde morava Raimundão e onde Binho armou sua rede muitas vezes.
Binho está com uma postura de candidato muito propositiva, como quem está descobrindo que fazer campanha, falar em público, fazer discurso, pode ser uma nova face de uma trajetória até agora direcionada para os bastidores técnicos e de articulação do governo. Binho fará um bom governo e, como afirmou, poderá priorizar o cuidado com as pessoas e a inclusão social, já que outras prioridades do desenvolvimento foram enfrentadas por Jorge Viana. Binho fez uma revolução como secretário de educação e poderá deixar uma marca inovadora no Estado.
Vendo Raimundão feliz, com um bonito comício de abertura de sua campanha, um dia depois de seu aniversário, cercado do apoio de outros parlamentares e do candidato a governador, não pude deixar de me emocionar ao lembrar quantas vezes cheguei exausta na colocação dele depois de 5 horas a pé de Xapuri, armei minha rede e tomei banho na cacimba antes de saborear da comida feita por ele ou por Mariazinha, para ganhar energia e seguir adiante na caminhada longa para chegar na primeira escola do Projeto Seringueiro.
sábado, julho 08, 2006
CHICO QUERIA DOCUMENTAR SEU FUNERAL
Foto de Denise Zmekhol (www.zdfilms.com)
No início de dezembro de 1988, duas semanas antes do assassinato de Chico Mendes, a cineasta e fotógrafa Denise Zmekhol recebeu um convite que a deixou chocada: documentar um funeral.
E quem fez o convite? Chico, ele mesmo.
A estória, que eu desconhecia, foi contada por ela em um email que me enviou dias atrás, falando sobre o filme que está concluindo, Children of the Amazon.
"Entre 1987 a 1990 eu viajei diversas vezes pela Amazônia trabalhando em vários filmes ("The Voice of the Amazon" da Miranda Smith, "Amazonia,Voices from the Forest" de Glen Switches e Monti Aguirre). E durante essas viagens eu fotografei as crianças indígenas, Suruí e Negarote, e as crianças seringueiras do Acre, entre elas os filhos do Chico Mendes. E em 2002 voltei para revisitar essas crianças e fazer um documentário sobre elas e o que havia acontecido com a Amazônia nesses últimos 15 anos. O filme conta a estória do impacto da BR 364 nessas três comunidades. A estória do Chico também faz parte do filme.
Duas semanas antes do seu assassinato ele me ligou em São Paulo pedindo um favor. Ele sabia que iria morrer até o final do ano e que queria que eu fosse filmar o seu funeral. Eu fiquei muito chocada com esse pedido ainda que tivesse estado com ele duas semanas antes e testemunhado toda a tensão que ele estava vivendo com as ameaças de morte. Ainda assim tentei convencê-lo em vir morar em SP ou no Rio por um tempo até que as coisas se acalmassem por lá. Mas ele dizia que a sua luta era no Acre e que ela não teria a mesma força em outro lugar. Duas semanas depois eu abri o jornal e li a notícia que ele tinha sido assassinado. Naquela época eu não tinha condições financeiras de viajar para o Acre com equipamento/ equipe para filmar o funeral. E achei também que não chegaria a tempo..."
Esse tipo de estória e de imagem é um exemplo do que Jorge Viana quer que esteja disponível para consulta na Biblioteca da Floresta. Projeto que elaborei em conjunto com o CTA - Centro dos Trabalhadores da Amazônia, com o objetivo de organizar a memória visual, sonora e escrita, dos movimentos sociais do Acre, acabou de ser aprovado pelo Governo do Estado. Denise Smekhol já disponibilizou algumas imagens. Certamente vamos encontrar outros profissionais com o mesmo interesse e a Biblioteca atrairá pesquisadores do mundo todo pela originalidade do seu acervo.
quarta-feira, julho 05, 2006
DE BUDA A CHICO MENDES
50 Grandes Ambientalistas
De Buda a Chico Mendes
O livro de Joy A. Palmer (Editora Contexto), lançado há pouco, faz um perfil de 50 personalidades que marcaram o mundo ambientalista. Cientistas como Bacon, filósofos como Rousseau, clássicos como Aristóteles e Virgílio, contemporâneos como Vandana Shiva e Brundtland, históricos como Muir e Carson, imbatíveis como Darwin e Lovelock - estão ao lado do nosso seringueiro Chico.
Será que ele poderia imaginar que um dia assumiria tamanha importância?
O perfil de cada personalidade escolhida é analisado do ponto de vista da história pessoal e da contribuição que deu para idéias que foram mudando o mundo, desde a antiguidade até hoje. Uma lista de obras de referência finaliza uma sintética biografia. A história do Chico tem os pontos principais registrados.
Mas alguns erros poderiam ter sido evitados. Não sei se são de tradução, porque não vi ainda o livro em inglês. Vou tentar checar no segundo semestre quando estiver dando aulas nos EUA. De qualquer forma, merece registro para que a editora corrija. Não há nada mais incoveniente do que ler um livro com problemas de tradução.
Equívocos e erros
1. The Amazon, que em inglês refere-se à Amazônia, a região, foi traduzido como Amazonas, ou seja, Chico virou herói dos seringueiros de um estado da Amazônia brasileira, erro muito comum em traduções da década de 80.
2. Seringais viraram fazendas de seringueiras. As pessoas não sabem como traduzir, não conhecem a palavra amazônica e acham que tudo que é produção não industrial pode ser classificado como fazenda.
3. National Wildlife Federation - Federação da Vida Silvestre, importante ONG norte-americana que apoiou a articulação do Chico contra o asfaltamento da BR 364, foi definida como Federação Nacional de Vida Nativa.
4. A história desta estrada, 364, fica um pouco distorcida: diz que Chico questionava porque as condições ambientais do empréstimo não estava sendo respeitadas. Na verdade, Chico questionava sim a omissão do governo federal em relação ao meio ambiente mas fazia pressão mesmo pela demarcação das terras indígenas e pela criação de reservas extrativistas porque entendia que estas eram as condições prévias para a proteção do meio ambiente.
5. Talvez o maior equívoco do texto - e não deve ser problema de tradução - é a afirmação de que Marina Silva foi eleita prefeita de Rio Branco e governadora e que o 'ambientalista' João Alberto Capiberibe foi reeleito governador do Amapá. Não é Marina mas Jorge Viana e, embora Capi seja sim um ambientalista nunca o vi se identificar politicamente dessa forma, mas sim como socialista.
6. Reservas e estabelecimentos (não sei a que palavra estará se referindo) extrativistas foram fundados em estados do Brasil além de reservas estatais.... confuso, não?
7. E, por último, como não podia deixar de ser, a clássica afirmação de que os seringueiros são miseráveis: "... os preços da borracha caíram tanto que as reservas extrativistas não produzem a renda suficiente para sustentar nem mesmo as necessidades básicas das comunidades". Essa deve ter sido a conclusão da autora que o tradutor (Paulo Cezar Castanheira) apenas reproduziu.
Seria bom que o Chico pudesse rebater essa ladainha.
E onde estão os líderes atuais que não falam nada?
Joy A. Palmer, a autora do livro, é professora de Educação e vice-reitora adjunta da Universidade de Durham, Inglaterra. É diretora do Centro de Pesquisas sobre Estudos e Consciência do Meio Ambiente da Universidade de Durham, vice-presidente da Associação Nacional de Educação para o Meio Ambiente e membro da Comissão de Educação e Comunicação da União Conservacionista Mundial.
segunda-feira, julho 03, 2006
COMENTÁRIOS AO ROTEIRO DE PLANO DE MANEJO
Roteiro Metodológico para Elaboração do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável Federais
Comentários
O documento produzido pelo DISAM/IBAMA é bastante abrangente e completo no que se refere a contemplar todas as áreas de conhecimento requeridas para se alcançar um diagnóstico exaustivo das unidades de conservação. A única e principal ressalva a se fazer é que nesse roteiro as comunidades locais são acessórias, ou seja, a existência e a função que desempenham nessa modalidade de UC em muito pouco influenciou os objetivos do PM ou a metodologia escolhida para realizá-lo.
Em síntese, penso que existe um problema metodológico que expressa uma questão conceitual a respeito da relação Estado-comunidades em unidades de conservação de uso sustentável.
1. Participação: como as comunidades participam da elaboração do Plano de Manejo.
A participação das comunidades residentes na elaboração do Plano de Manejo está assegurada pela lei mas não pela metodologia proposta pela DISAM - Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental do Ibama. De acordo com a metodologia elas devem ser ouvidas e participar uma vez que serão "diretamente afetadas pelas normas e diretrizes do referido documento". Parte-se, portanto, do conceito de que o Plano é externo a elas, irá restringir as ações realizadas e poderá terá impacto derivado do poder de administração do IBAMA.
Assim, assegura-se a participação de forma normativa, ou seja, formal. Elas serão convidadas às reuniões, serão ouvidas nas entrevistas, provavelmente serão guias dos pesquisadores, mas não são co-responsáveis pela elaboração do Plano nem são pesquisadores e/ou consultores com status equivalente ao dos técnicos que irão realizar os levantamentos.
A metodologia é formal, segue os preceitos participativos tradicionais aplicáveis a comunidades rurais concebidas como atrasadas e sem protagonismo. A necessidade de assegurar participação, a todo momento no texto, é a evidência de que, na prática participação é igual a consulta e não a ação.
Uma metodologia verdadeiramente participativa é diferente: requer a contratação, em pé de igualdade, de "pesquisadores locais" - aquelas pessoas designadas pela comunidade para realizar o trabalho juntamente com os pesquisadores acadêmicos e escolhidas de acordo com critérios previamente definidos: conhecimento da comunidade, da área, dos recursos, representatividade, liderança etc.
Uma metodologia verdadeiramente participativa requer um planejamento que antecipe o objetivo principal de um plano de manejo em reserva extrativista ou reserva de desenvolvimento sustentável, que é o pleno conhecimento da comunidade a respeito das riquezas e potencialidade de sua área e das oportunidades e limites de uso desse patrimônio. O plano de manejo precisa ser um instrumento de trabalho para os moradores e não um documento acadêmico para conservacionistas ou funcionários públicos. Assim o planejamento deve ter esse objetivo em mente: como combinar o conhecimento empírico com o científico, como debater e aprovar pela comunidade, como publicar de forma que cada morador veja sua contribuição no produto final.
2. Conteúdo: qual o valor teórico e prático das informações levantadas.
O roteiro do PM é o de uma tese acadêmica e acho que tem um enorme valor acadêmico se todas as áreas puderem contar com as informações referidas e estudos comparativos puderem ser realizados. Mas tem pouca ou nula função para os gestores da área, que são as comunidades locais.
Isso não quer dizer que os dados não devam ser levantados. Quer dizer que é preciso hierarquizar as informações conforme a relevância delas para os objetivos finais do PM.
Pode-se considerar que, idealmente, todas as UCs devem alcançar, ao final de uma década de pesquisas, todas as informações requeridas no documento. Mas que, para que a comunidade possa administrar de forma ambientalmente responsável e com retorno econômico o patrimônio sob sua concessão, algumas informações são mais essenciais do que outras. E essas devem ser pesquisadas prioritariamente.
De pouco vai adiantar para a gestão das UCs a compilação da lista enorme de dados que os pesquisadores deverão levantar. E considerando que a exploração dos recursos depende do PM, isso significa que as comunidades vão continuar na ilegalidade por muito tempo até que todo esse processo seja desencadeado.
Só para citar um exemplo no tópico de gestão da unidade:
"Se não existir o Plano de Utilização, estabelecer com as comunidades as Regras de Convivência, de maneira a definir as competências e responsabilidades entre os moradores e o órgão gestor, no sentido de assegurar a utilização racional e sustentável dos recursos naturais."
Atender a este tópico poderia ser o objetivo primeiro do PM: criar um instrumento de transição entre o Plano de Utilização e o Plano de Manejo; ou criar as Regras de Convivência para aqueles que não têm um Plano de Utilização. Com base nessa atividade, realizada de forma realmente participativa, seriam hierarquizadas as demais informações necessárias, até se chegar a um entendimento global da área, seu entorno, sua situação atual e cenários futuros.
Outro exemplo importante é o que define a sustentabilidade ambiental e socioeconômica da Unidade e que está incluído nos capítulos dos Cenários e dos Programas. Ambos têm como referência as demandas das comunidades. Mas não existe um espaço destinado ao levantamento e à identificação das demandas e dos cenários desenhados pelas próprias comunidades. Ou seja, o diagnóstico não necessariamente levará a comunidade a discutir onde está e onde quer chegar se não houver uma metodologia especificamente definida para este fim.
Por último, realizar a atividade de zoneamento da unidade poderia ser um meio de organizar todas as informações demandadas e de mobilizar a comunidade para pensar a área em conjunto, trocar informações com pesquisadores e organizar um projeto de futuro. Mas da forma como está, o zoneamento é mais um item da longa lista de dados a serem compilados em cada unidade.
3. Inovação: comunidades pesquisadoras versus Estado
Da forma como está definida a metodologia, o Plano de Manejo de cada UC demandará uma equipe multidisciplinar de cerca de 5 pessoas diretamente envolvidas, levará cerca de um ano para ser realizado e deverá ter um custo unitário bastante elevado. Ao final, se não forem realizadas correções de metodologia e objetivos, o produto será um enorme documento que ficará mofando nas prateleiras do IBAMA e não terá nenhuma utilidade prática para as comunidades.
Isso não quer dizer que não terá informações relevantes para a Amazônia. Poderá se transformar, porém, em um instrumento de poder do Ibama sobre as comunidades que passará a fiscalizar as áreas a partir do que estiver ali definido.
O problema é a falta de inovação e o papel passivo – de consulta – delegado às comunidades. Não faz juz à história das reservas extrativistas nem é coerente com o processo de criação de uma reserva extrativista que requer mobilização, organização e ativa defesa de seus interesses. Ao se inserir nas malhas do Estado, toda essa riqueza vai se burocratizar e virar documento de tecnocrata e de acadêmico e não instrumento de mobilização para a mudança da realidade.
A institucionalização das reservas extrativistas é um processo delicado e que requer uma revisão do papel do Estado nas unidades de conservação. Entendo as unidades de uso sustentável como resultado de um pacto entre Estado e comunidades em torno da gestão dos territórios e esse pacto requer regras mutuas de convivência e de uso dos recursos e ambos devem criá-las em conjunto sob pena de se perpetuar a idéia de comunidades passivas ou dependentes e governos autoritários ou populistas.
Imagino o processo de elaboração de um Plano de Manejo como uma oportunidade única de mobilização de energias de conhecimento e prática, de reflexão e ação, de envolvimento e crítica, de história e futuro. É também uma oportunidade de criar parcerias sólidas, de envolver centros locais de pesquisa, de revolucionar métodos, de criar novas oportunidades de aprendizado para os moradores das reservas, de contribuir para o auto-conhecimento da comunidade e de seus recursos e a consolidação dos laços que vão permitir um projeto de futuro. E de definir um outro tópico fundamental não previsto na metodologia apresentada: indicadores de monitoramento, instrumento que pode ser muito útil para acompanhar a execução dos programas e objetivos definidos pelas comunidades e formalizados no Plano.
Não estou falando teoricamente. Apliquei recentemente essa metodologia na elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável da RDS do Rio Iratapuru no Amapá, resultado de um contrato da Natura com a AMAPAZ/DS, e o resultado final foi excelente.
Comentários
O documento produzido pelo DISAM/IBAMA é bastante abrangente e completo no que se refere a contemplar todas as áreas de conhecimento requeridas para se alcançar um diagnóstico exaustivo das unidades de conservação. A única e principal ressalva a se fazer é que nesse roteiro as comunidades locais são acessórias, ou seja, a existência e a função que desempenham nessa modalidade de UC em muito pouco influenciou os objetivos do PM ou a metodologia escolhida para realizá-lo.
Em síntese, penso que existe um problema metodológico que expressa uma questão conceitual a respeito da relação Estado-comunidades em unidades de conservação de uso sustentável.
1. Participação: como as comunidades participam da elaboração do Plano de Manejo.
A participação das comunidades residentes na elaboração do Plano de Manejo está assegurada pela lei mas não pela metodologia proposta pela DISAM - Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental do Ibama. De acordo com a metodologia elas devem ser ouvidas e participar uma vez que serão "diretamente afetadas pelas normas e diretrizes do referido documento". Parte-se, portanto, do conceito de que o Plano é externo a elas, irá restringir as ações realizadas e poderá terá impacto derivado do poder de administração do IBAMA.
Assim, assegura-se a participação de forma normativa, ou seja, formal. Elas serão convidadas às reuniões, serão ouvidas nas entrevistas, provavelmente serão guias dos pesquisadores, mas não são co-responsáveis pela elaboração do Plano nem são pesquisadores e/ou consultores com status equivalente ao dos técnicos que irão realizar os levantamentos.
A metodologia é formal, segue os preceitos participativos tradicionais aplicáveis a comunidades rurais concebidas como atrasadas e sem protagonismo. A necessidade de assegurar participação, a todo momento no texto, é a evidência de que, na prática participação é igual a consulta e não a ação.
Uma metodologia verdadeiramente participativa é diferente: requer a contratação, em pé de igualdade, de "pesquisadores locais" - aquelas pessoas designadas pela comunidade para realizar o trabalho juntamente com os pesquisadores acadêmicos e escolhidas de acordo com critérios previamente definidos: conhecimento da comunidade, da área, dos recursos, representatividade, liderança etc.
Uma metodologia verdadeiramente participativa requer um planejamento que antecipe o objetivo principal de um plano de manejo em reserva extrativista ou reserva de desenvolvimento sustentável, que é o pleno conhecimento da comunidade a respeito das riquezas e potencialidade de sua área e das oportunidades e limites de uso desse patrimônio. O plano de manejo precisa ser um instrumento de trabalho para os moradores e não um documento acadêmico para conservacionistas ou funcionários públicos. Assim o planejamento deve ter esse objetivo em mente: como combinar o conhecimento empírico com o científico, como debater e aprovar pela comunidade, como publicar de forma que cada morador veja sua contribuição no produto final.
2. Conteúdo: qual o valor teórico e prático das informações levantadas.
O roteiro do PM é o de uma tese acadêmica e acho que tem um enorme valor acadêmico se todas as áreas puderem contar com as informações referidas e estudos comparativos puderem ser realizados. Mas tem pouca ou nula função para os gestores da área, que são as comunidades locais.
Isso não quer dizer que os dados não devam ser levantados. Quer dizer que é preciso hierarquizar as informações conforme a relevância delas para os objetivos finais do PM.
Pode-se considerar que, idealmente, todas as UCs devem alcançar, ao final de uma década de pesquisas, todas as informações requeridas no documento. Mas que, para que a comunidade possa administrar de forma ambientalmente responsável e com retorno econômico o patrimônio sob sua concessão, algumas informações são mais essenciais do que outras. E essas devem ser pesquisadas prioritariamente.
De pouco vai adiantar para a gestão das UCs a compilação da lista enorme de dados que os pesquisadores deverão levantar. E considerando que a exploração dos recursos depende do PM, isso significa que as comunidades vão continuar na ilegalidade por muito tempo até que todo esse processo seja desencadeado.
Só para citar um exemplo no tópico de gestão da unidade:
"Se não existir o Plano de Utilização, estabelecer com as comunidades as Regras de Convivência, de maneira a definir as competências e responsabilidades entre os moradores e o órgão gestor, no sentido de assegurar a utilização racional e sustentável dos recursos naturais."
Atender a este tópico poderia ser o objetivo primeiro do PM: criar um instrumento de transição entre o Plano de Utilização e o Plano de Manejo; ou criar as Regras de Convivência para aqueles que não têm um Plano de Utilização. Com base nessa atividade, realizada de forma realmente participativa, seriam hierarquizadas as demais informações necessárias, até se chegar a um entendimento global da área, seu entorno, sua situação atual e cenários futuros.
Outro exemplo importante é o que define a sustentabilidade ambiental e socioeconômica da Unidade e que está incluído nos capítulos dos Cenários e dos Programas. Ambos têm como referência as demandas das comunidades. Mas não existe um espaço destinado ao levantamento e à identificação das demandas e dos cenários desenhados pelas próprias comunidades. Ou seja, o diagnóstico não necessariamente levará a comunidade a discutir onde está e onde quer chegar se não houver uma metodologia especificamente definida para este fim.
Por último, realizar a atividade de zoneamento da unidade poderia ser um meio de organizar todas as informações demandadas e de mobilizar a comunidade para pensar a área em conjunto, trocar informações com pesquisadores e organizar um projeto de futuro. Mas da forma como está, o zoneamento é mais um item da longa lista de dados a serem compilados em cada unidade.
3. Inovação: comunidades pesquisadoras versus Estado
Da forma como está definida a metodologia, o Plano de Manejo de cada UC demandará uma equipe multidisciplinar de cerca de 5 pessoas diretamente envolvidas, levará cerca de um ano para ser realizado e deverá ter um custo unitário bastante elevado. Ao final, se não forem realizadas correções de metodologia e objetivos, o produto será um enorme documento que ficará mofando nas prateleiras do IBAMA e não terá nenhuma utilidade prática para as comunidades.
Isso não quer dizer que não terá informações relevantes para a Amazônia. Poderá se transformar, porém, em um instrumento de poder do Ibama sobre as comunidades que passará a fiscalizar as áreas a partir do que estiver ali definido.
O problema é a falta de inovação e o papel passivo – de consulta – delegado às comunidades. Não faz juz à história das reservas extrativistas nem é coerente com o processo de criação de uma reserva extrativista que requer mobilização, organização e ativa defesa de seus interesses. Ao se inserir nas malhas do Estado, toda essa riqueza vai se burocratizar e virar documento de tecnocrata e de acadêmico e não instrumento de mobilização para a mudança da realidade.
A institucionalização das reservas extrativistas é um processo delicado e que requer uma revisão do papel do Estado nas unidades de conservação. Entendo as unidades de uso sustentável como resultado de um pacto entre Estado e comunidades em torno da gestão dos territórios e esse pacto requer regras mutuas de convivência e de uso dos recursos e ambos devem criá-las em conjunto sob pena de se perpetuar a idéia de comunidades passivas ou dependentes e governos autoritários ou populistas.
Imagino o processo de elaboração de um Plano de Manejo como uma oportunidade única de mobilização de energias de conhecimento e prática, de reflexão e ação, de envolvimento e crítica, de história e futuro. É também uma oportunidade de criar parcerias sólidas, de envolver centros locais de pesquisa, de revolucionar métodos, de criar novas oportunidades de aprendizado para os moradores das reservas, de contribuir para o auto-conhecimento da comunidade e de seus recursos e a consolidação dos laços que vão permitir um projeto de futuro. E de definir um outro tópico fundamental não previsto na metodologia apresentada: indicadores de monitoramento, instrumento que pode ser muito útil para acompanhar a execução dos programas e objetivos definidos pelas comunidades e formalizados no Plano.
Não estou falando teoricamente. Apliquei recentemente essa metodologia na elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável da RDS do Rio Iratapuru no Amapá, resultado de um contrato da Natura com a AMAPAZ/DS, e o resultado final foi excelente.
Assinar:
Postagens (Atom)